domingo, 24 de agosto de 2008

79.

Foto de M

Há momentos em que só as pedras e as flores rente ao chão conhecem a voz dos nossos passos. Assim pensei quando, ao olhar esta fotografia, encontrei nela semelhanças com a imagem de alguém que em desespero se passeia para trás e para diante sobre um caminho estreito aparentemente sem saída.
Mas este universo dos passos é mais vasto do que os labirintos em casa própria e por isso associei depois a esta primeira imagem a realidade com que alguns noticiários de televisão nos apresentam a presença humana neste mundo. Haverá certamente intenções muito particulares no modo como o fazem e na escolha deste ou daquele plano, um misto de exigências profissionais impostas e a sensibilidade de quem olha os outros através da lente de uma máquina. Interrogo-me. Será por causa de tudo isso que tantas vezes nos são mostrados apenas as pernas e os pés das pessoas fotografadas? Uma questão de respeito, uma tentativa de proximidade contida? Ou precisamente o inverso e da necessidade de afastamento perante a impossibilidade de proximidade resulta a rejeição dos corpos no seu todo? Não sei, mas parece-me a mim que desagregar assim os outros se torna ainda mais confrangedor para quem vê essas imagens. Como se, adivinhando nós o sofrimento e o desalento, ou a raiva, naqueles corpos sem rosto, fossemos impedidos de pousar o nosso olhar no deles. Revejo na minha memória as botas pesadas de soldados pisando destroços e ervas queimadas pelo desaforo das guerras, esquecido o gesto natural da coerência do amor no ser humano. Deixada para trás, ignorada assim, a angústia de gente fugindo por ruas esboroadas pelo ódio, arrastando a nudez dos seus pés ou os farrapos com que os protegem. Exangues, alguns morrendo diante de nós em poças de sangue vivo, escondido o olhar que sabemos assustado, mostrados apenas as pernas e os pés. E o seu silêncio. Porque só o chão por onde passam a caminho da vida ou da morte conhece a voz íntima dos seus passos.
M

domingo, 17 de agosto de 2008

78.

Foto de M

E na sequência do texto e fotografia anteriores, confesso-vos que aquela luz dourada da montra me despertou curiosidade e uma vontade imensa de descobrir o que estaria para lá dela.
Entrei na loja. Dentro o espaço é exíguo, apesar do espelho ali posto para nos dar a ilusão de que o não é. Logo à direita, sobre um pequeno balcão, está pousada uma almofada macia. É nela que os clientes apoiam o cotovelo quando querem experimentar o modelo de luva que mais lhes agrade à vista, sob o olhar solícito do empregado e dos seus movimentos bem coordenados. Pareceu-me que se mexia com à-vontade neste cubículo dourado, pois não notei que ele reduzisse o sorriso e a amplitude dos gestos sempre que procurava e abria as caixas onde guardava as luvas. Bem acomodadas e identificadas por modelo e número, descansavam temporariamente em prateleiras por detrás de uma cortininha que as separa do balcão e para lá voltavam, perdido ou não o negócio.
Ora perscrutado o lugar e considerada apetecível a variedade oferecida, talvez não resista a tentar encontrar alguma luva que se ajuste ao meu tamanho de mão…
M

77.

Foto de M

Quem quer que tenha composto esta montra deve entender de comportamentos humanos, ou não se lembraria de colocar ali aquelas luvas em gesto de gente. Contrastando com as outras, um pouco mais na sombra, hirtas e em declive, apartadas dos pares que as completam, como se anónimas fossem, ignorada a cor, esquecidos os botões.
Mas voltando às luvas em gesto de gente, é curioso que imagino mãos dentro delas. As mãos de alguém que se reconhece ao tocar-se e assim se deixa ficar, os dedos mostrando um certo relaxamento. Talvez a expressão de quem aguarda com serenidade o que o mundo lhe traz em cada instante que passa. Ou, pelo contrário, posso também pensá-las em desalento, como sinal do que sente quem já pouco ou nada espera. Apesar das flores plastificadas, ou até por isso mesmo, e assim permanece abúlico, resguardado em pespontos. Ou, ou, ou… Tantas as suposições, tão diversos os rostos a elas associados!
M

quarta-feira, 13 de agosto de 2008

76.

Foto de M

Será talvez assim a solidão dos homens: uma estufa de silêncios presos em estruturas metálicas de luz coada.
M

segunda-feira, 11 de agosto de 2008

75.

Foto de M

Sayonara. Madame Butterfly. Puccini. Estufa Fria, jardim de plantas diversas onde a luz é silêncio e sombra húmida e passos serenos de corpos enlaçados em sussurros indecifráveis de países longínquos pisam a pedra miúda de caminhos nossos.
Juntei-os todos na minha imaginação quando ali fotografei esta janela que me lembrou o cenário da ópera Madame Butterfly que em tempos vi. E pensei o adeus e o amor na sua universalidade, para lá das palavras ditas e do seu entendimento. Atravessando mares e continentes, tocando culturas distintas, na fidelidade e na infidelidade, no aceno vago da fuga ou no voo da esperança no encontro. Un bel di vedremo… A comoção na voz dolorida da experiência humana do amor. A voz de cada um, qualquer que seja o lugar onde o amor pousa e o adeus se diz.
M

sábado, 2 de agosto de 2008

74.

Foto de M

Seremos pedras roliças pousadas no prato da balança que é este nosso mundo terreno suspenso no universo?

Chão corroído pelos passos do desespero em círculo?

Cada um com sua textura muito própria, será no abandono que nos sentimos uns aos outros e rejeitamos o abismo?

Perdidas as palavras do pensamento, falaremos apenas com o silêncio de um entreabrir de lábios indecisos?

Será a estética das coisas e dos sentimentos que nos resgata do lado que nos desequilibra?

Porque não perguntar?

M