quinta-feira, 26 de março de 2009

95.

Foto de M

Porque a palavra desta semana no Fotodicionário foi Pobreza, fotografei-a deste modo, tentando exprimir através dela as minhas reflexões sobre a sua natureza.

Penso na pobreza como resultado do desacerto entre brilhos e planuras de sombras em caminhos estreitos onde só o nada é presença, seja ele individual, social, nacional, mundial, político, económico, espiritual, ético, cultural, estético. Por culpa própria ou alheia, por incapacidades ou desistências, por ignorância, por sonegação do direito à vida inteira, por limites impostos, por arbitrariedades que aviltam o ser humano, por tantas mais razões desconhecidas que ferem ou matam o sonho da existência. Mas também olho para a palavra atribuindo-lhe um outro sentido, a que chamarei despojamento, em escolha pessoal e íntima de renúncia a tudo o que possa ser obstáculo ao desejo de sentir a pureza suprema da vida. Contudo, julgo que só depois de alguém ter possuído os bens mínimos essenciais à sua sobrevivência física e mental com a dignidade que merece, terá disponibilidade interior para fazer essa escolha.
M

sexta-feira, 20 de março de 2009

94.


Foto de M

Ainda o Jean Jacques.
Encostado ao frio branco da parede, entretém-se a enroscar e a desenroscar o pensamento entre estruturas e parafusos a lembrar um esqueleto de corpo humano a que não falta também o esboço de um colo. Ri-se, o coelho, acha graça a imaginar colos em cavaletes de madeira enquanto o seu olhar passeia pelo atelier. E é no meio desta bricolage mental em que ocupa o tempo de espera que repara na mola de cabelo, agarrada com unhas e dentes a uma tábua-parapeito, em aparente desacerto entre a sua própria natureza e o lugar. Recorda-se de a ter visto na cabeça da amiga (presume que a agarrar-lhe também as ideias irrequietas). Agora o momento é outro, bem sabe, e é este que ela segura, ou nele se segura, talvez as duas coisas. Não acha estranho, está habituado a que a presença da pintora arraste consigo um torvelinho de gestos em permanente dança de engenho e estética. Mas Jean Jacques é paciente e aguarda o instante em que ela olhará para ele com ternura e lhe levantará uma das orelhas para lhe dizer um segredo.

M

sábado, 14 de março de 2009

93.


Foto de M

Quando o vi, Jean Jacques (o coelho) estava pacientemente sentado no tempo da pintora de palhaços desenhados na tela a embaraçar meteoritos caídos sobre a cidade dos desencantos. E num outro também, o da infância macia: a dele, e a da menina de riso aberto com quem costumava brincar. Ele conserva a estatura da meninice, e talvez também o pensamento, ela deixou de lhe encontrar o olhar na mesma linha do horizonte. Jean Jacques roçou o tamanho dos dias, estranhou-a nos sulcos das rugas e passou a viver dentro de recordações que abrem os silêncios do tempo em conversas de língua de trapos que ambos conhecem. Entre os dois cavaletes e não só.
M