sexta-feira, 17 de julho de 2009

100.


Foto de 1924 digitalizada por M

«Memory offers up its gifts only when jogged by something in the present. It isn’t a storehouse of fixed images and words, but a dynamic associative network in the brain that is never quiet and is subject to revision each time we retrieve an old picture or old words.»

The Sorrows of an American, Siri Hustvedt


Quando eu chegar aos cem anos…, costumava dizer, uma expressão provocatória no rosto, já por volta dos seus oitenta e tal anos. Ou ainda, visto que fazia projectos para o futuro, não sei se a brincar se porque o desejava mesmo ou se desafiava a inevitabilidade da morte. Morreu quase rente aos noventa e cinco, por causa de uma pneumonia que se aproveitou de uma perna partida provocada por uma queda.
Lembrei-me dela a propósito deste meu post número 100 e daquele excerto do livro de Siri Hustvedt ali em cima. Chamava-se Julieta e era minha tia. Ou tia Leta, para mim e para o meu irmão. Mais tarde, já depois da sua morte, por sugestão de uma amiga minha a quem contei do seu espírito criativo, passei a referir-me a ela como tia Chanel.
Conheci-lhe aquele gesto gracioso de mãos que ressalta na fotografia de 1924. Não eram esguias nem elegantes, as suas mãos, mas transformavam-se quando pegava na navette da renda de frioleira ou bordava os seus próprios desenhos nos linhos finos dos naperons, sentada na cadeira baixa, a cortina entalada de lado na dobradiça da janela do quarto para que a luz entrasse sem cerimónia. Durante algum tempo ocupou-se também a criar bonecas de pano para vender. Recortava moldes em tecido preto e, depois de os coser à máquina separadamente, enchia-os de algodão com a ajuda do bico da tesoura e unia-os dando-lhes forma de gente. Nasciam assim pequenas figuras com cerca de quinze centímetros de altura animadas de vida própria, cada boneca mostrando uma expressão distinta no rosto. Os olhos e o sorriso adivinhado nos lábios vermelhos bordados a ponto de pé de flor, o vestido colorido, uma imitação de astracã compondo-lhes o cabelo encaracolado, uma pulseira no braço, brincos, o colar de missangas a enfeitar-lhes o pescoço. Quando acabados todos os pormenores que lhes conferiam personalidade, colocava seis ou mais em cima da cama e olhava-as satisfeita. Garanto-vos que era delicioso vê-las em grupo, como se fossem meninas de verdade no recreio da escola.
Mas a tia Chanel não estava sempre naquele cantinho da sua fantasia, gostava muito de sair e fazia o seu passeio diário pelas ruas do bairro, trazendo sempre, de regresso a casa, uma história real para contar. Tão divertidas como a História do Menino Marmelada de um livro da sua infância que nos lia, a mim e ao meu irmão, os três encaixados na chaise longue de veludo verde do seu quarto. Não me lembro exactamente do livro, sei que tinha imagens coloridas e que a história me encantava.
Era com ela que subia e descia a pé a Tapada da Ajuda acompanhando as habilidades e os equilíbrios do meu irmão em cima da trotineta de estimação trazida da Alemanha pelos meus pais, à época uma novidade em Portugal, com pneus de borracha e rodas maiores do que as dos brinquedos nacionais. Quilómetros trilhados pela mão da nossa infância, entre caminhos de árvores e flores belíssimas onde o cansaço não ocupava lugar e eu me lembro de sentir a Natureza como parte de mim.
Ah e o Presépio que a tia Chanel preparava todos os Natais! Tenho que falar dele. Construía-o em cima da cómoda de um dos quartos interiores da nossa casa. Parece que estou a vê-la a amachucar ao de leve os pedaços de papel pardo pintado para lhes dar forma de montes que enfeitava com musgo verdadeiro e um ou outro pequeno espelho redondo de mala de senhora a lembrar lagos de águas límpidas. Lá no cimo, a cabana de madeira com telhado de palha, as figuras bíblicas principais no silêncio sereno da espera. Através desses caminhos inventados, os passos imaginados de pastores, carneirinhos, mulheres de cântaros à cabeça ou um cesto no braço, os três Reis Magos. E a nossa candura de meninos.

Recordo-te com saudade, Tia Leta.
M