quinta-feira, 15 de outubro de 2009

103.


Foto de M

Chamou-me a atenção desde a primeira vez que o vi abrir a porta de casa e abeirar-se do varandim, à semelhança dos imperadores de tempos idos.
Não será de estranhar que tal pensamento me tenha surgido, dada a proximidade da Estrada Romana do Vau e das ruínas silenciosas que marcam presença na zona. Por isso mesmo não me custa admitir, e até me diverte, imaginar que a natureza imperial de antepassados nossos corra ainda como quadriga veloz no sangue de alguns dos seus habitantes.
Assomava ali todos os dias, camisa e calças imaculadas, as mãos apoiadas na cintura larga, os braços arqueados em gesto de afirmação, a cabeça rodando para um e outro lados, como se precisasse de acabar de secar o aftershave húmido no rosto escanhoado. Compreendo que se esmerasse para saudar as manhãs, claro que compreendo, mas não me agradou a habitual sofreguidão com que sorvia a brisa matutina. Parecia assumir-se como dono do mundo a esgotar o ar puro na primeira inspiração, deixando outros à míngua de tão desejado alimento purificador.
Pelo menos aparentemente, o pobre melro enfiado dentro daquela gaiola exígua suspensa entre quivis pertencia a este César do século XXI. Em desespero de causa, tentava voar levantando um pouco as belas asas negras, mas esbarrava na falta de espaço para subir alto, magoando o corpo de encontro às grades. Evidentemente que, nem pelo facto de a sua cela baloiçar como leve balão de festa popular, essa encenação surtia qualquer efeito positivo no seu anseio de liberdade.
Passei várias vezes por perto, a diversas horas, garantindo a distância razoável que me segurasse a indignação, e constatei que o desassossego do pássaro se mantinha ao longo do dia, aquietando-se apenas ao entardecer. Não sei se a recuperar forças para a luta diária que o esperava, sonhando entretanto com milheirais e relva verde nos jardins, se morrendo pouco a pouco de tristeza.
À noite já lá não estava, nem a gaiola vazia e a porta escancarada, pelo que suponho que nem nesse momento de estrelas e lua, se as houvesse, o infeliz podia sair para cantar os seus versos.
Era então que o presumível senhor do melro aproveitava a lassidão deixada pelo calor das tardes de Verão para mitigar a sede das plantas encaixadas no metro quadrado de área cimentada do seu canteiro, entre a parede da casa e o varandim. Vi-o várias vezes desenrolar vagarosamente a mangueira arrumada no suporte de ferro cravado na parede branca, a curta distância do alegrete. Abria então a torneira e arrastava pelo chão aquele peso de água enclausurada em reduzido diâmetro de borracha, oferecendo assim alguma frescura ao seu pedaço de terra sequiosa.
Espantou-me a desproporção. Se ele soubesse como é bom pegar num regador colorido e deixar que borrifos de água límpida acariciem as flores como beijos leves!...
M