quinta-feira, 17 de dezembro de 2009

Feliz Natal!


Foto de M

SER PÁSSARO EM TERRA


Tomé corria pela estrada abaixo pensando que gostava de ser um pássaro com asas muito grandes e fortes para poder voar para longe. Daqueles que jogavam às escondidas no meio dos pinhais e que de repente desapareciam com tanta velocidade que ele nunca mais os voltava a ver.
Enquanto corria lembrou-se que o avô costumava dizer-lhe “Ai pernas para que vos quero!” e que se ria muito, quando ele fugia da gata Galpinha depois de lhe puxar a cauda vezes sem conta. Não é que ele não gostasse da gata, claro que gostava, mas achava graça a arreliá- la! Só que agora, por mais que mexesse as pernas, parecia que elas não saíam do mesmo sítio. E, para tornar as coisas ainda piores, aquelas outras palavras do avô não o largavam, sempre a repisarem, a repisarem nos seus ouvidos: “Não me estejas a desinquietar!”.
Virou a cabeça para trás, mesmo sem parar de correr ― queria ter a certeza de que não vinha ninguém atrás de si ― e quase ia caindo quando uma das suas botas tropeçou na outra. Agarrou-se então com força ao raminho de um arbusto que pendia sobre a berma da estrada, tentando equilibrar-se, e dessa maneira evitar uma queda desastrosa. Até parecia o palhaço Trapalhão que às vezes via na televisão no Circo de Natal!
Recomposto do susto, chupou o sangue que lhe escorria da mão pois, sem ele saber como, tinha-se picado numa silva traiçoeira enrolada no ramo a que se agarrara. “Está quedo, rapaz! Não mexas aí, olha que te picas!”: lá estava outra vez a voz do avô Américo a sussurrar- lhe avisos ao ouvido.
De repente pareceu-lhe que o nevoeiro da manhã tinha voltado, pois os seus olhos estavam turvos e não o deixavam ver bem o caminho. Talvez alguma poeira caída da arvorezinha a que se segurara lhe tivesse entrado para os olhos. Esfregou neles a manga da camisola, procurando com esse gesto clarear a visão. Ficou surpreendido quando reparou que a lã da camisola estava húmida, mas depressa compreendeu a razão: as lágrimas contidas a custo pela raiva com que saíra de casa tinham transbordado! E tudo por causa da silva! Se não fosse ela não teria chorado! Tirou rapidamente o lenço de assoar do bolso das calças, enrolou-o com cuidado no dedo ensanguentado e, antes de recomeçar a sua corrida estrada abaixo, olhou uma vez mais para trás, para se certificar de que não era seguido.
Tomé estava agora sentado no meio de uma clareira, rodeado de troncos grossos de pinheiros e eucaliptos recém cortados que se adivinhava terem sido árvores enormes. Na sua correria desenfreada passara por ela como um foguete, mas acabara por dar meia volta e parar. Curioso como era, não resistira a inspeccionar o que da estrada lhe tinha parecido serem uns banquinhos muito engraçados, todos arrumados ao lado uns dos outros. Divertira-se então a saltitar de tronco em tronco ― e quase tinha pisado um pinheiro pequenino que espreitava do chão ― acabando por se estatelar em cima das aparas pontiagudas de um deles. Ui! Doía-lhe tanto...
Ao esfregar o rabiosque, para aliviar um pouco a dor provocada pelo trambolhão, reparou que as calças tinham um buraco de todo o tamanho, daqueles buracos enormes que fazem com que as mães se zanguem e ralhem muito. Ah, ia ter que encher a cara da mãe com beijinhos e mais beijinhos para ela não se arreliar! Mas depressa mudou de ideias: afinal não precisava de dar beijinhos nenhuns, porque quem estava zangado era ele. Pois, até já se tinha esquecido que largara porta fora muito aborrecido, mal se levantara da cama.
Deitou-se então no chão de barriga para o ar, com as mãos debaixo da cabeça, e pôs-se a ver as nuvens que corriam no céu. Era essa a sua posição preferida quando queria pensar. Se o pai ali estivesse de certeza que lhe fazia a vontade, mas ele andava sempre a caminho dos Alpes... Tinha tantas saudades dele!... Fungou um bocadinho, porque uma lágrima escorregava agora para o nariz, mesmo sem ele querer. Já não era a primeira vez que isso lhe sucedia e só gostava que alguém lhe explicasse como era possível que as lágrimas que ele guardava tão bem dentro dos olhos fugissem assim depressa para o nariz! Porquê aquela mania do pai ir cortar árvores para tão longe, se havia tantas ali pertinho?! Quando ele voltasse havia de o trazer a esta clareira para lhe mostrar que na terra deles também se encontravam árvores grandes para deitar abaixo.
Decidiu fechar os olhos por instantes: a luz do sol quase lhos furava e sentia a cabeça a andar à roda de tanto fixar as nuvens que corriam, corriam sem descanso. Quis depois voltar a abrir os olhos mas não foi capaz, porque as pálpebras pesavam tanto... Acabou por adormecer, embalado pelo assobio suave do vento no pinhal do outro lado da estrada.
Foi então que o Pinheirinho ― não mediria mais do que um metro de altura ― muito magrizela e fraco, com uns ramos fininhos, fininhos, resolveu meter conversa com Tomé.
― Estou intrigado contigo, rapaz. Que andas por aqui a fazer sozinho a esta hora da manhã?
― Ora, apeteceu-me passear!
― Hum! Aqui há gato!
― Não há gato nenhum! A minha gata ficou lá em casa, ninguém veio comigo ― respondeu ele com voz de poucos amigos.
― Está bem, não te zangues... não te zangues... mas eu desconfio que estás hoje muito arreliado...
― Pois estou, claro que estou.
― Ah! Bem me parecia...
― Pois, porque eu ontem vi na televisão umas árvores de Natal que se vendem nas lojas, muito grandes, todas enfeitadas, e a minha mãe não quer ir comprar uma para nós. Não são verdadeiras, sabes? Mas são tão lindas! Também... não lhe custava nada, nem era preciso ir de propósito à loja. Quando fossemos com a minha avó ao médico a Coimbra, comprávamos... Não achas que eu tenho razão?
― Olha, não sei bem... Mas tu gostas assim tanto dessas árvores?
― Pois gosto.
― Ah! E se eu te ajudar a resolver esse problema?... ― perguntou o Pinheirinho.
― Como é que tu me podes ajudar a resolver esse problema? Tu não sais daqui... não andas...
― Ora essa! Parece que não acreditas em mim.
― Está bem, não te zangues comigo... ― respondeu Tomé um pouco atrapalhado.
― Eu tenho a impressão que tu gostas de árvores e flores... já te tenho visto passar por aqui com o teu avô... e até dizes: “Avô, cheira tão bem a eucalipto!”...
― Oh! ― O menino encolheu os ombros. ― E o que é que isso tem a ver?... Pois gosto. Mas estas árvores foram cortadas... e também nunca estiveram enfeitadas como as outras que eu vi na televisão. Não têm luzes a acender e a apagar, nem neve, nem bolinhas coloridas, nem estrelas...
― Lá isso é verdade... mas... então e eu não sou ninguém?!...
― Tu?! És ainda tão pequenina! ― Tomé ria-se agora com gosto.
― Também tu!... E se eu conseguir arranjar uns enfeites?... Não são iguais aos outros que tu viste, mas são muito bonitos... e eu acho que tu até gostavas mais dos meus.
― Mas como é que tu consegues isso?
― Consigo... Tenho os meus amigos, sabes? Só tens que fechar muito bem os olhos ― disse o Pinheirinho com ar misterioso.
― Mas eu já tenho os olhos fechados! Não vês que estou a dormir?
― Pois, mas tens que os fechar ainda mais. E só os abres quando eu disser.
Tomé tapou completamente os olhos com as duas mãos e ficou à espera, os ouvidos muito atentos aos ruídos à sua volta. Estava com tanta atenção que até lhe parecia ouvir falar baixinho e apetecia-lhe mesmo espreitar mas, como não tinha licença para abrir os olhos, fez muita força com as pálpebras e com as pestanas para os fechar ainda mais.
― Já podes olhar!
― Oh! Oh! ― exclamou o menino com espanto, logo que abriu os olhos.
Mesmo na sua frente estava o Pinheirinho todo enfeitado, nem parecia o Pinheirinho magrizela! Nos seus ramos brilhavam estrelas verdadeiras, prateadas, daquelas que ele via no céu em noites quentes de luar. Oh! E borboletas amarelas, azuis, pretas salpicadas de branco... mexendo as suas asas como se dançassem ao som de uma música invisível.
― Ó mãe, já viu esta árvore de Natal? Ih! Ih! Ih! Ai, não me faça cócegas! Ih! Ih! Ih! ― Tomé acordou nesse momento e, ainda meio sonolento, admirou-se por não ver a mãe a seu lado. Mas... porque é que continuava com cócegas se ela não estava ali a brincar com ele?
Espreguiçou-se... esfregou os olhos... e só então, depois de os ter muito abertos, reparou que tinha um carreirinho de formigas a passear no seu pescoço... Levantou-se com um salto, sacudiu-as e ficou a vê-las a dar cambalhotas no chão e a correrem de um lado para o outro até formarem um comboio muito apressado. A seguir voltou para casa.
M

Nota: Escrevi este pequeno conto em Dezembro de 2001 para acompanhar os cartões de Boas Festas feitos em casa com cartolinas de cores variadas que enviei para amigos meus de longa data. Inspirei-me na vida de um menino que conheço daquele lugar magnífico que a fotografia da paisagem mostra e que é especial para mim desde criança.
E como, ao mexer em papéis antigos, reencontrei esta memória, apeteceu-me partilhá-la convosco.
Porque o Natal pode ser terno e eterno.