sábado, 31 de dezembro de 2011

O Prazer de Viajar - 41






Fotos de A.

Às vezes temos esta mania de retalhar o mundo, o nosso olhar como tesoura a recortar pedaços de uma paisagem, que passa a ser outra sendo a mesma, corta aqui, corta ali, dois milímetros para a direita, a nuvem branca por metade, aquele detalhe luminoso a fugir da sombra do medo. Pegamos depois em todos esses fragmentos, fazemos com eles uma colagem, pomos-lhe uma moldura e penduramo-la nas paredes do nosso pensamento.
M

(Atravessando o canal entre a Horta, na Ilha do Faial, e São Jorge, em barco irrequieto sobre um mar de sobressaltos. O meu corpo, esse, coitado, contraído pela falta de hábito de viajar ao jeito dos mareantes.)

quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

168.


Foto de M

Às vezes o céu tem destas coisas: rasga-se em pedacinhos e aconchega os nossos braços nus erguidos em desespero.
M

(Ponta Delgada, Ilha de São Miguel)

O Prazer de Viajar - 40


Foto de A.

«Seis anos sem domingos nem festas, sem ver se fazia sol ou chuva, ou se era noite ou dia. Pelas cinco da manhã, subia aos sítios mais altos da Ilha, quilómetros e quilómetros a pé descalço, para cima e depois para baixo, com três latas de leite às costas. Depois, pegar no sacho ao ombro, ir para as terras, da parte da manhã até ao princípio da tarde sachar milho de corrida pelos camalhões fora, sachar beterraba, sachar o feijão, sachar o mundo que crescia e se levantava para o sol do Verão. Ao meio-dia e um quarto, traziam-me o comer, bebia café amargoso, condutava batatas escoadas com o maldito peixe salgado. Pelas quatro da tarde, largava de novo para os pastos: amanhar as reses, tirar o leite às vacas, trazer às costas as mesmas três latas. Já o sol se punha ao longe e o mar deixava de ser só cinza para se converter num ocre de sangue a derramar-se por cima da água. A água do meu sangue.»

Excerto do livro Gente Feliz com Lágrimas, de João de Melo, Colecção Mil Folhas, Público

Foto: Serra do Cume, Ilha Terceira, Açores

quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

O Prazer de Viajar - 39



Fotos de M

Quando, em Junho de 2010, visitei a Ilha do Faial, fui levada à loja de Véronique Scholer, no piso térreo da casa em que vive, e fiquei fascinada com a beleza dos trabalhos que me mostrou. De nacionalidade belga e formada em Artes, apaixonou-se há muitos anos pelos Açores e ali se fixou, pondo em prática os seus talentos artísticos. Disse-me também que cultiva no seu jardim o trigo com que executa os trabalhos.
Foi das mãos dela que recebi uma fotocópia com a informação que abaixo partilho.
M

Bordado a Palha

«O bordado a palha define-se como sendo um bordado feito à mão sobre filó ou tule (preto ou branco) em que é utilizada como linha a palha de trigo (colmo) cortada em tiras finas.
Segundo o “Arquivo dos Açores”, o bordado a palha aparece na Ilha do Faial em 1850, através de uma imigrante inglesa, que apresenta um corte de chapéu para senhora de seda preta bordado a palha, proveniente de França.
A sua expansão é feita através de uma faialense, Senhora Joanna E. Ferreira, que descobre a forma de bordar a palha e a ensina na Ilha do Faial, tornando-se uma das exportações desta ilha para os Estados Unidos e Europa.
A partir da década de cinquenta, com a falta de matéria- prima, já que o tule passou a ser de nylon, a produção decaiu, ficando apenas restrita a duas ou três senhoras que aprenderam a técnica por tradição familiar.
São duas destas artesãs, que utilizam diferentes técnicas, Senhora Elvira Teixeira e Senhora Maria Lúcia de Sousa, quem, actualmente, transmitem os seus conhecimentos às pessoas interessadas em não deixar acabar esta arte, característica da Ilha do Faial (provavelmente o único local onde existem estes bordados).
Com o objectivo de revitalizar os bordados a palha, alguns organismos oficiais fizeram um esforço no sentido de desenvolverem cursos de formação profissional: a Câmara Municipal da Horta e, mais recentemente, o Centro Regional de Apoio de Artesanato, tendo este último já programado um novo período de formação.
O resultado dessas acções foi o aparecimento de um pequeno grupo de artesãs, mais novas, que procuram um relançamento dos bordados, quer pela manutenção dos riscos antigos quer pela aplicação da sua técnica à criação de artigos mais modernos e com novos desenhos inventados.
Tradicionalmente as aplicações do bordado a palha podem ser apreciadas em vestidos, xailes, romeiras, mantas de pescoço e cabeça, chapéus de senhora e tiras.
A beleza destes trabalhos, e o seu fascínio, em que o brilho da palha sobressai no tule, é reconhecido pela admiração dos que o vêem pela primeira vez e pelos prémios que têm recebido nos concursos de artesanato.
Esta é, aliás, uma forma da promoção destes bordados junto de possíveis produtores e do público, aguardando-se com muita expectativa o resultado do concurso do Bordado Antigo dos Açores, com posterior exposição e edição do catálogo das obras apresentadas.
Estando incluída na portaria regional de certificação do bordado açoriano (Portaria 89/98 de 3 de Dezembro), os trabalhos com bordado a palha são valorizados e poderão alcançar uma nova projecção, em que entidades públicas e privadas, em pareceria, estão apostadas em conseguir.»

Artesanato do Capelo
Verónica Scholer Brasil Alves
(Véronique Scholer)
(Pintura em seda, bordados a palha e outros)
Rua do Canto, Capelo, 9900-304 Horta / Faial
Açores / Portugal
Telefone: 292945127

O Prazer de Viajar - 38










Fotos de M

Gosto muito desta fotografia e dos pormenores que nela evidenciei para melhor realçar a personalidade de cada um. No seu todo, e nas suas particularidades, sugere-me a cor das crianças, jardins que são na desilusão do mundo. A vivacidade, a alegria do riso, o sorriso dos beijos molhados, a graciosidade dos gestos, os segredos escondidos no ouvido do amigo, as corridas desordenadas, o arranhão no joelho, os cabelos levantados pelo sopro do vento, o laço cor de rosa a escorregar na trança, o bichinho na mão fechada, a limpidez do olhar ausente, a curiosidade na pergunta, a insistência na resposta esperada, o amuo nos lábios crispados, a folha arrancada do ramo em desafio de forças… E tantas outras imagens!
Sim, é belíssima a cor das crianças no mundo dos desalentos adultos.
M

(Casa de Véronique Scholer Brasil Alves, Capelo, Ilha do Faial, Açores. Dela e do seu trabalho de artesanato falarei no próximo post.)

terça-feira, 27 de dezembro de 2011

O Prazer de Viajar - 37


Foto de M

Abaixo do céu os telhados das nossas vidas, repouso breve para o voo dos pássaros.
M

(Nordeste, Ilha de São Miguel, Açores)

O Prazer de Viajar - 36


Foto de M

Três árvores de Natal possíveis. A harmonia na sobriedade das linhas e a presença do sagrado em diálogo íntimo com os homens na nudez dos seus corpos.
M


(Igreja Matriz de Ponta Delgada, Ilha de São Miguel, Açores)

segunda-feira, 26 de dezembro de 2011

O Prazer de Viajar - 35


Foto de M

Gosto de degraus. Sinto neles qualquer coisa de humano, de presença. Imagino corpos curvados sobre as pedras, as mãos gretadas depurando arestas, esculpindo o pensamento, amassando a arte e a estética no quotidiano íntimo das suas existências, o tempo a esvair-se na obra realizada.
Gosto de degraus, ainda que corroídos pelo desgaste dos passos. Conciliam soluções escavadas na natureza - quiçá agreste -, e parecem por vezes ligar a terra e o céu em encontros instáveis entre ambos onde se desequilibram e equilibram os que, como eu, habitam a História na sua singular constância de presenças e ausências, tão inexoráveis são os limites impostos pelo relógio humano.
M

(Igreja de Santa Bárbara em Manadas, Ilha de São Jorge, Açores)

sábado, 24 de dezembro de 2011

O Prazer de Viajar - 34 (A pedido de uma amiga, recomeço esta minha viagem interrompida em Julho de 2010)


Foto de M

a alma é uma ave
de lume branco, disseram.
e deram-lhe o nome de beija-céu

Emanuel Jorge Botelho


21 Haiku com Asas (Terceiro Livro, Emanuel Jorge Botelho – Urbano), in 21 Haiku com Asas, Urbano e Cabras, Galeria 111

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O Pico visto da Ilha de São Jorge.
Como pássaro escondido entre a folhagem o espreitei e assim me deixei ficar entre voos imaginados.
M

sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

167.


Foto de M

No trilho do meu olhar entre proximidade e distância encontro-me com a voz do silêncio e a música do instante em bailado de formas simples. Tão-só um movimento de presença na imobilidade dos corpos.
M

quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

Natal de 2011


Foto de M

Que, apesar do nevoeiro que nos rodeia neste mundo, cada um de nós seja capaz de encontrar uma luz que ilumine o seu caminho e o dos outros.
São estes os meus desejos para quem passar por aqui.
M

domingo, 18 de dezembro de 2011

166.


Foto de M

Leve o voo branco dos pássaros sobre as hastes delicadas das flores.
M

165.


Foto de M

Caramelos que me alimentam. O meu maná.
Emaranhados onde o meu olhar repousa e o pensamento se liberta.
Na beleza do mundo encontro a humanização da Vida.
M

sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

164.


Uma enorme necessidade de cor




Como um abraço



Ou um beijo


Fotos e sussurros de M

163.


Foto de M

Era um dia frio de Dezembro num terminal de camionetas em Lisboa.
Estava de costas, não muito afastado de mim, quando reparei nele. Homem de estatura média, o forte cabelo branco cobria-lhe completamente a cabeça inclinada sobre o ombro direito, como se alguém a tivesse aparafusado ali. Vestia um casacão gasto mas aparentemente quente e abaixo das calças um pouco curtas, a proteger-lhe parcamente os pés, os sapatos abertos deixavam entrever umas meias finíssimas, passajadas até ao limite do buraco mais pequeno. A certa altura virou-se e cruzei o meu olhar com o dele: impressionante a dignidade que transparecia do seu rosto calado.

Não tardou que a camioneta se aproximasse da paragem. Respeitada a ordem da fila para entrar, cada um ocupou então o seu lugar dentro dela. Já eu estava sentada quando vi o homem pedir dois bilhetes ao motorista. Percebi nesse momento que viajava acompanhado pela senhora que, apoiada em duas muletas, tinha acabado de se acomodar na fila à frente da minha, do outro lado da coxia. O homem sentou-se a seu lado. Numa das mãos segurava dois sacos, na outra o telemóvel, e nessa posição permaneceu até ao final da viagem. Aparentemente alheios à presença um do outro, ela lendo uma revista, assim se mantiveram, mudos e imóveis, durante os quarenta minutos do trajecto. Só quando, em determinada altura, ele levou o telemóvel ao ouvido, como se quisesse certificar-se de que tinha tocado, e endireitando por breves instantes a cabeça, a vi seguir-lhe o movimento do braço. Nada dizendo um ao outro, os olhos dela colaram-se de novo à revista e a cabeça dele desceu até ao ombro.
Chegados a Mafra, destino para a maior parte dos passageiros, apeámo-nos. A senhora, apoiada nas muletas, afastou-se vagarosamente, enquanto o seu companheiro de mutismos se demorava junto da porta de saída da camioneta. Esperava pelo homem cego que viajara connosco acomodado no banco à frente do meu, a cabeça sempre encostada ao vidro da janela, a bengala enrolada no pulso como tesouro que se não larga, e que me parecera perdido num mundo desconhecido para si. Vi que lhe deu a mão para o ajudar a descer os degraus até alcançar chão firme. Sem uma palavra, apenas um gesto a ligar o mundo de silêncios que falava dentro de ambos.
M

domingo, 11 de dezembro de 2011

162.


Foto de M

Gosto de livros empilhados. Lembram-me guardanapos de linho resguardados em prateleira de confeitaria aconchegada entre cores macias e palavras sussurradas.

O empregado estava atento. Assim que os clientes pagaram a conta e abandonaram a mesa ao pé da janela, retirou as chávenas e os pratos com as migalhas do lanche e colocou-os no tabuleiro juntamente com a toalha amarrotada. Regressou após alguns minutos. Estendeu sobre a madeira escura um novo quadrado de linho e dois guardanapos com as iniciais da casa bordados no canto, alisou os vincos com a ponta dos dedos e afastou-se.
Ela entrou, sem pressa, e dirigiu-se para a mesa acabada de preparar. Pousou distraidamente o livro que trazia na mão em cima de um dos guardanapos, pendurou a mala nas costas da cadeira e sentou-se.
O empregado aguardou que ela se acomodasse e aproximou-se com a lista para que escolhesse o que desejava tomar. Só um momento, por favor, estou à espera de uma pessoa. Não demorará, penso, disse, ao mesmo tempo que o fitava com atenção, o sorriso a abrir-se-lhe nos lábios.
Pegou em seguida no livro, reabriu-o na página marcada com uma fotografia, leu meia dúzia de linhas e voltou a fechá-lo, ao mesmo tempo que o empurrava ligeiramente para cima do guardanapo ao seu lado. Virou a cabeça para a janela. Tinha agora o olhar longe, para lá da cortina. Esfolheava o seu pensamento.
M

quinta-feira, 8 de dezembro de 2011

161.


Foto de M

A lua estava lá, uma enorme bola luminosa onde descanso o meu olhar de viajante deste mundo em busca do infinito.

A lu, a lu!, exclamava o menino, e todo ele ria, era ainda a idade das palavras imperfeitas à procura de si mesmas.
Também ele tinha descoberto a doce lua.

M

sexta-feira, 2 de dezembro de 2011

Memórias 3.


As manas no ballet
(Foto de S.)

Linhagens e Cristas

Pela frontaria desta casa e pelo bairro em que está inserida na cidade, presumo que existisse nela aquele costume antigo de tratar as empregadas por criada de fora e criada de dentro. Denominação curiosa esta do dentro e do fora que fazia parte dos estatutos de algumas das famílias mais abastadas. Nos contextos sociais dos nossos dias, ainda que em situações semelhantes, terá outros contornos e outras designações. Não sei exactamente que funções domésticas desempenhavam nas linhagens de outros tempos. Tenho uma vaga ideia que à criada de dentro eram atribuídos os trabalhos mais pesados, como as lavagens de roupa, e as azáfamas na cozinha por causa das exigências dos patrões em questão de paladares e condimentos. Ainda que frugal, impunha-se que a refeição fosse gostosa e bem apresentada em travessa de porcelana fina ou de prata.
À outra criada, a tal de fora (embora vivesse dentro), estaria entregue, tanto quanto sei, o arranjo dos quartos, a limpeza do pó dos senhores, o atendimento à porta de entrada e às visitas, e o serviço à mesa. O que, dada a variedade de tarefas e de sujidades quotidianas, implicava a necessidade de um traje especial e condigno para servir os almoços e os jantares. Uma farda, claro, ainda que caseira e íntima (embora fosse criada de fora): bata preta, avental com folho de renda ou bordado inglês bem engomado, punhos brancos, e uma crista na cabeça que se reflectia nas salvas de prata. Talvez uma oportunidade para ela se ver a si própria a meio de um dia gasto em benefício dos outros. Nada mau encontrarmos alento na imagem de nós mesmos, ainda que pouco nítida. Mas voltando à indumentária, por vezes também ela calçava luvas brancas. Não para passear pelas redondezas, como a sua senhora, mas para pegar no serviço de chá, à hora das torradas e dos bolinhos.
Felizmente que, de um modo geral, as casas antigas tinham varandas. Acabada a refeição, as criadas retiravam tudo o que estava em cima da toalha branca de algodão e enrolavam-na nos braços como quem pega numa criança. Abriam de seguida as janelas e, apoiando-se no parapeito da varanda para se certificarem de que no passeio em baixo não passava ninguém, ofereciam as migalhas aos pardais que por ali esvoaçavam. Mas não só: juntamente com as pequenas sobras de pão atiravam também um sorriso demorado ao polícia de serviço na esquina da rua a catrapiscar as raparigas da vizinhança. E suponho que o fariam com o esmero que a qualidade de criada de fora com crista lhes proporcionava…
M

(Em 4 de Novembro de 2005)

Memórias 2.


A escada
(Foto de S.)

Folhas Caídas

Enroscada numa tarde de chuva, sentou-se num degrau e esperou que ele lhe dissesse: − Vem comigo passear pelo Outono.

M

(Em 5 de Novembro de 2005)

Memórias 1.


Desencontros
(Foto de S.
)

Um Banco de Jardim

Esta coisa de um banco passar horas num jardim dá-lhe, julgo eu, carácter, pensamentos e sentir de gente. Pelo convívio com as pessoas, suponho. Vem um e senta-se, vem outro e mete conversa com o primeiro, depois chega outro e conta a sua vida, um quarto adormece as suas horas vazias... Enfim, uma socialização ao ar livre: Dá-me licença que me sente? Faça favor…, responde o sorriso de alguém. Parece-me que a conheço…, alvitra o dono do cãozito que ladra com voz esganiçada. Está calado, Farrusco! A necessidade de palavras ditas e ouvidas vai-se desobstruindo: É natural, vivo neste bairro há muitos anos. A sua cara também não me é estranha… E o que à partida poderia parecer tratar-se apenas de um banco, passa a ser considerado um colo. Leva o seu tempo, claro, humanizar a madeira rija de um banco, mas o contacto com os corpos que nele se sentam vai pouco a pouco amaciando as ripas da sua estrutura.
A princípio, ainda no armazém, entre os seus inúmeros companheiros a sofrerem acabamentos e retoques e o cheiro incomodativo de tintas e vernizes, interrogara-se para que lugar o levariam. Tinha ouvido alguém falar de uma rua com passeios largos onde havia a intenção de colocar bancos, para que as pessoas neles pudessem descansar o seu afogadilho, e os muito velhos, à falta de melhor distracção, se sentassem a caturrar e a ver correr os apressados. Ficou apreensivo a pensar no que lhe cairia em sorte, pois que preferia outras vistas às de uma rua buliçosa, cheia de ruído e de pressas. Sempre se tinha imaginado a um canto de um jardim pacato, com árvores frondosas e flores delicadas, chilreada de pássaros e fragrâncias frescas no ar. Acalmou um pouco quando mais tarde, ainda que apertado entre vários bancos dentro da camioneta da Câmara Municipal, percebeu, pela conversa dos empregados, que o iam levar para um jardim. Aliás, aquele corvo preto pousado sobre o verde da porta da camioneta, e que num relance lhe parecera verdadeiro, tinha-lhe dado a esperança de que o seu destino fosse mesmo esse. Se também trazem um pássaro, pensou, é bom sinal… Espero que seja para o soltarem num jardim… Mas depressa se apercebeu de que o corvo não passava de um desenho e que por essa razão se mantivera imóvel durante o longo percurso pelas ruas íngremes da cidade.
Finalmente tinham acabado as curvas e contracurvas, as subidas e descidas, o trânsito lento por ruelas apertadas, os infernais solavancos sobre o empedrado de basalto, as travagens súbitas e os impropérios lançados janela fora pelo motorista! Agora o banco estava num lugar que lhe agradava. Sentia-se bem naquele canto, o céu espreitando-o lá do alto por entre as árvores debruçadas sobre o pequeno lago a seus pés, a fina renda de ferro forjado verde debruando a sua casa desprovida de paredes.
Mal teve tempo de dormitar na meia-luz da tarde. Ouviu passos esmagando ao de leve os grãos de milho espalhados sobre as pedras brancas do chão, pezinhos de criança correndo para ele, trepando por ele acima, regozijando-se com a descoberta. Avó, este banco não estava aqui ontem! Senta-te ao pé de mim. Recostou-se, acariciou-o com as suas mãos de menina, sentou nele a sua boneca. E ali permaneceu, apenas durante o tempo que as crianças são capazes de guardar, um tempo curto que salta de banco em banco e de colo em colo.
M

(Em 8 de Novembro de 2005)

quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

Provérbios Fotografados - 12


Foto de M

«Em casa de menino de rua, o último a sair apaga a lua»


Rifoneiro Português por Pedro Chaves (2ª edição), Editorial Domingos Barreira