domingo, 24 de novembro de 2013

A mansidão da memória


Barcos em repouso 
(Foto de S.) 
   
Um Pedaço de Mar
   
É manso este teu gesto prateado de me tocar os pés descalços.
M
26 out 2005

Memórias do pensamento


Solidão 
(Foto de S.)
 

Alguém
 
Costumava acompanhar-se a si mesmo na vastidão da praia, os bolsos das calças repletos de conchas e búzios, pequenos presentes que o mar lançava nas suas mãos.
M
24 out 2005

quinta-feira, 21 de novembro de 2013

Silhuetas de memórias


Silhuetas de amigos 
(Foto de S.) 

Podia ser o título de um filme

Silhuetas de amigos. Podia ser o título de um filme a preto e branco. Mudo, com gestos apenas, daqueles em que se adivinham os afectos por detrás das fisionomias, desenrolados no mutismo da bobina, o argumento saltando para o ecrã do nosso silêncio. O silêncio do entendimento das imagens sem voz audível dentro de nós, o prazer da conjectura sobre o que não é claramente revelado.
Julgo que o ritual da pesca é também calado e pensativo, cada gesto lento, avaliado antes de a linha ser lançada longe. Um diálogo de palavras guardadas entre o pescador e a cana de pesca, expectativas atiradas sobre a água que corre mansa, desejos que flutuam, que mergulham, que desafiam. A tentação espetada no anzol, e o peixe lá em baixo, um pequeno isco atravessando-se na sua estrada azulada, obrigando a um desvio de caminho, a uma paragem. Um salto, um paladar a experimentar, um sabor a que se não resiste, um puxão na linha, um sinal rapidamente enrolado no carreto. Uma desilusão agarrada ao anzol? Que importa? Existem mais engodos miúdos dentro da cesta à espera dos dedos hábeis do pescador.

Acção! De novo o ritual da cilada, luz e sombra, contrastes na paisagem. Há que respeitar o fim do filme: um peixe preso num voo contrafeito, dançando o seu último bailado prateado a solo, pingando azul sobre o sorriso do pescador, debatendo-se a seus pés com a vida. Desistindo dela, impotente perante a degustação adiada de um homem paciente.
M
30 de Outubro de 2005

quarta-feira, 20 de novembro de 2013

Memórias


O homem que não gostava de romãs
(Foto de S.)

Numa Tarde de Outono

Convidou-o a sentar-se consigo à mesa, mas ele recusou-se a fazer-lhe companhia, respondeu-lhe que não gostava de romãs. Como se gostar ou não de romãs tivesse alguma importância numa tarde em que ela lhe queria falar dos seus medos de criança! Um pavor que ficara para sempre colado à lembrança do bramido do mar, o seu corpo de menina batido pela fúria líquida, o medo escorrendo em remoinho pelos cabelos, apossando-se dela, engasgando-a. De quase nada lhe valera a corda grossa presa entre o areal e a bóia que flutuava nas águas assanhadas. Mergulhara e subira à superfície repetidas vezes, as mãos e os braços doendo de força ao longo da corda, cada centímetro arrastado esfolando-lhe os dedos gelados e apoderando-se pouco a pouco da distância que a separava da areia. Acabara por cair extenuada em cima de um tapete de algas escorregadias, como se fosse, também ela, uma alga lançada pelo ronco medonho de uma onda sobre o areal. 
Nesta tarde de Outono ela está só, encostada a uma mesa coberta com uma toalha delicada de pedra que abana ligeiramente com a brisa. Ao longe, na vastidão da praia, o mar e o homem que não gostava de romãs.
M
27 de Outubro de 2005

quinta-feira, 14 de novembro de 2013

196.


Foto de M

Não feches a porta, disse ela, debruçando-se sobre o parapeito da janela do primeiro andar. 
A amiga tinha acabado de descer as escadas que gemiam sob o peso dos seus passos e chegara naquele momento ao pátio onde as crianças da vizinhança brincavam. Acenaram uma à outra em jeito de despedida.
Não feches a porta, recomendou de novo. Deixa-a encostada. O sol e o vento gostam de se refugiar ali quando brincam às escondidas com os meninos. Lembras-te como era divertido? 
Leonor lembrava-se. Nesse tempo a porta estava pintada de verde vivo e as dobradiças não chiavam. Nem as minhas... respondeu, o sorriso gaiato a abrir caminho entre as rugas do rosto. 

M

sexta-feira, 8 de novembro de 2013

195.


Foto de M

Quando olhei para cima e vi aquela imagem no vidro da janela pensei como seria quem ali morava. Estaria com a telha? Teria telhas? Dar-lhe-ia na telha sair porta fora por já não suportar tamanha invasão de casa alheia?
Não faço ideia mas eventualmente terão acabado por se entender pois que todos temos telhados de vidro. Ou melhor, neste caso será mais apropriado dizer-se telhado no vidro, o que tornaria a convivência mais frágil, a exigir cuidados redobrados.

M