quinta-feira, 21 de maio de 2015

217.


Foto de M

Eu andava pelo bairro lembrando lugares, reconhecendo-os, descobrindo diferenças trazidas pelos anos de ausência, pisando devagar as pedras do caminho que me levava ao liceu onde fui aluna durante cinco anos. A certa altura, ao olhar para cima, reparei no enquadramento da janela entreaberta: o rosa vivo, a parede fechada do outro lado, os ramos secos das árvores, o céu azul, os telhados escondendo vidas, o pedacinho da plataforma da ponte. Parei, o olhar preso lá longe, à espera que algum carro passasse e eu conseguisse captá-lo através da minha máquina fotográfica, apesar da pressa com que se deslocavam, como se, uns atrás dos outros, fugissem de mim. Aprisionei a camioneta, tão pequenina na distância. E pensei: interessante como a distância pode fazer parte do que nos está mais próximo.
Entre a brevidade dos momentos e a permanência me construo e reconstruo. Eu, a adulta de hoje, e a outra eu, a da infância e da juventude. E no entanto sempre eu, fiel companhia que me sustém no mapa da minha existência.
M

quarta-feira, 13 de maio de 2015

216.


Foto de M 

Restara apenas o cabo do guarda-chuva. Dias antes, um vendaval desabrido arrancara-lhe das mãos a haste com as varetas e arrastara-as pelo ar enroladas no tecido preto rasgado, ao encontro das nuvens cinzentas que corriam apressadas sobre a sua cabeça. Resolvera então pendurá-lo na geringonça instalada no exterior do teatro, talvez alguém achasse graça àquele ponto de interrogação ou encontrasse nele algum simbolismo. Não é o teatro um espaço de permanente reflexão sobre a vida, expressa das formas mais diversas? 
Felizmente o sol abrira-se um pouco a meio da manhã apaziguando com a sua presença os temperamentais assomos outonais. Hoje até podia fumar o seu primeiro cigarro ao ar livre sem se preocupar com imprevistos climáticos. Não o acabou, alguém lhe falava ao ouvido, o tal sensato do costume, um sensaborão. Não estranhou o sussurro, estava habituado a conviver com várias personagens dentro de si. Mergulhou a beata na água de uma das taças abandonando-a à curiosidade de algum pardalito que ali pousasse a refrescar-se. Antes escorrega de bebedouro do que beata!, pensou. Sorriu, divertiam-no os diferentes significados que as palavras podem ter. Sentindo-se mais relaxado depois do breve intervalo, entrou no edifício. Na sala, os outros actores esperavam-no para ensaiarem em conjunto a peça de teatro que assinalava o quadragésimo aniversário da companhia. 
M

(Em novembro de 2011, acompanhei uns amigos na visita à sede do Grupo de Teatro o Bando em Vale de Barris, Palmela, onde tirei esta fotografia por achar graça ao recanto.)

quinta-feira, 7 de maio de 2015

215.


Foto de M 

Debalde foi ali pousado o balde em descanso temporário, pensado como sendo de bom préstimo para quem regasse a horta ou arrecadar nele os legumes colhidos pela manhã. Mas qualquer coisa deve ter corrido mal. Alguma embirração com o seu aspecto antiquado e enferrujado, ou preferência por balde de plástico garrido comprado na feira mensal, talvez uma represália, e vá lá saber-se o motivo, nas aldeias é comum sobreporem-se as vindictas à natureza pura da terra. Em vez do estado de provisória quietude na beira do tanque, passou o balde ao estado de abandono vitalício, ainda por cima taparam-lhe a boca, nem gritar ele pode, coitado. Suplício supremo, penso eu, quase o de Tântalo. 
M