quarta-feira, 13 de maio de 2015

216.


Foto de M 

Restara apenas o cabo do guarda-chuva. Dias antes, um vendaval desabrido arrancara-lhe das mãos a haste com as varetas e arrastara-as pelo ar enroladas no tecido preto rasgado, ao encontro das nuvens cinzentas que corriam apressadas sobre a sua cabeça. Resolvera então pendurá-lo na geringonça instalada no exterior do teatro, talvez alguém achasse graça àquele ponto de interrogação ou encontrasse nele algum simbolismo. Não é o teatro um espaço de permanente reflexão sobre a vida, expressa das formas mais diversas? 
Felizmente o sol abrira-se um pouco a meio da manhã apaziguando com a sua presença os temperamentais assomos outonais. Hoje até podia fumar o seu primeiro cigarro ao ar livre sem se preocupar com imprevistos climáticos. Não o acabou, alguém lhe falava ao ouvido, o tal sensato do costume, um sensaborão. Não estranhou o sussurro, estava habituado a conviver com várias personagens dentro de si. Mergulhou a beata na água de uma das taças abandonando-a à curiosidade de algum pardalito que ali pousasse a refrescar-se. Antes escorrega de bebedouro do que beata!, pensou. Sorriu, divertiam-no os diferentes significados que as palavras podem ter. Sentindo-se mais relaxado depois do breve intervalo, entrou no edifício. Na sala, os outros actores esperavam-no para ensaiarem em conjunto a peça de teatro que assinalava o quadragésimo aniversário da companhia. 
M

(Em novembro de 2011, acompanhei uns amigos na visita à sede do Grupo de Teatro o Bando em Vale de Barris, Palmela, onde tirei esta fotografia por achar graça ao recanto.)

1 comentário:

Justine disse...

M., uma foto cheia de sensibilidade com um texto que lhe faz jus!! Muito belo!