terça-feira, 30 de junho de 2020

DO QUE GOSTO 18


Foto de S. (Silhuetas de amigos)
 
Podia ser o título de um filme


Silhuetas de amigos. Podia ser o título de um filme a preto e branco. Mudo, com gestos apenas, daqueles em que se adivinham os afectos por detrás das fisionomias, desenrolados no mutismo da bobina, o argumento saltando para o ecrã do nosso silêncio. O silêncio do entendimento das imagens sem voz audível dentro de nós, o prazer da conjectura sobre o que não é claramente revelado.
Julgo que o ritual da pesca é também calado e pensativo, cada gesto lento, avaliado antes de a linha ser lançada longe. Um diálogo de palavras guardadas entre o pescador e a cana de pesca, expectativas atiradas sobre a água que corre mansa, desejos que flutuam, que mergulham, que desafiam. A tentação espetada no anzol, e o peixe lá em baixo, um pequeno isco atravessando-se na sua estrada azulada, obrigando a um desvio de caminho, a uma paragem. Um salto, um paladar a experimentar, um sabor a que se não resiste, um puxão na linha, um sinal rapidamente enrolado no carreto. Uma desilusão agarrada ao anzol? Que importa? Existem mais engodos miúdos dentro da cesta à espera dos dedos hábeis do pescador.
Acção! De novo o ritual da cilada, luz e sombra, contrastes na paisagem. Há que respeitar o fim do filme: um peixe preso num voo contrafeito, dançando o seu último bailado prateado a solo, pingando azul sobre o sorriso do pescador, debatendo-se a seus pés com a vida. Desistindo dela, impotente perante a degustação adiada de um homem paciente.
M

(2005)

DO QUE GOSTO 17


Foto de S. (Volto já)

Um Quiosque na Praia


Um chapéu amarelo tapando-lhe o cocuruto, a condizer com o resto da toilette e com o lugar ao sol porque, mesmo tratando-se de um quiosque, convém cobrir a cabeça. Por causa do calor outonal encoberto, resquícios do Verão, dos dias em que o sol escaldava os corpos despidos.
Um certo ar oriental, também, naquela aba revirada para cima, à semelhança das bailarinas tailandesas, braços e dedos esguios graciosamente levantados dançando ao som de músicas longínquas para lá da linha do horizonte. Ou minarete de mesquita, não se dê o caso de algum veraneante precisar de ser discretamente lembrado das suas obrigações espirituais, que em indumentárias balneares se esquecem por vezes as religiões e os seus preceitos.
Ali em cima está escrito: Volto já. Não sei se volta, quem quer que tenha deixado o aviso. Falsas promessas, possivelmente. O Verão fechou as portas e com ele levou a rapariga que aqui trabalhou durante as férias. Talvez de costas para o mar, ou talvez não. Quem sabe abria todas as janelas em redor desta casa emprestada e poisava o seu olhar no azul imenso. Para lá das revistas e dos jornais que pendurava do lado de fora do quiosque, em exposição. Longe das bóias e das braçadeiras balançando leves; indiferente aos pentes e aos ganchos de cabelo coloridos; alheia aos baldes com pás e formas dentro, figuras plastificadas de caranguejos, patos, estrelas-do-mar, peixes, conchas, barcos… Tudo ali dependurado: tentação de criança, berros de criança, sorrisos e tristezas de meninos, sonhos de meninos, birras também. Ralhos de adulto, equívocos de adulto, benevolências de adulto, recordações em fato de banho, baldes vermelhos repletos de infâncias antigas à espera da água colhida no mar. Castelos, bolos e sabores de areia de outros tempos dissolvidos num ápice; novos castelos e novos sabores agora, outros bolos moldados pelas mãos dos filhos e dos netos, e dos sobrinhos. Buracos cavados na areia molhada pela fantasia de outros filhos, de outros netos, de outros sobrinhos, os dos amigos no toldo ao lado. Que importam as mãos, que importam os baldes? Repetem-se os gestos, ainda que a areia escorregue entre os dedos.
Espero que não volte tão cedo, quem quer que tenha deixado o aviso lá em cima. Gosto do quiosque no Outono da praia, despido das cores estivais, recolhido em meditação neste vazio de gente.
M
 
(2005)

segunda-feira, 29 de junho de 2020

DO QUE GOSTO 16


Foto de S. (Solidão)

Alguém

Costumava acompanhar-se a si mesmo na vastidão da praia, os bolsos das calças repletos de conchas e búzios, pequenos presentes que o mar lançava nas suas mãos.
M

(2005)

domingo, 28 de junho de 2020

DO QUE GOSTO 15


Foto de S. (O homem que não gostava de romãs)
 
Numa Tarde de Outono


Convidou-o a sentar-se consigo à mesa, mas ele recusou-se a fazer-lhe companhia, respondeu-lhe que não gostava de romãs. Como se gostar ou não de romãs tivesse alguma importância numa tarde em que ela lhe queria falar dos seus medos de criança! Um pavor que ficara para sempre colado à lembrança do bramido do mar, o seu corpo de menina batido pela fúria líquida, o medo escorrendo em remoinho pelos cabelos, apossando-se dela, engasgando-a. De quase nada lhe valera a corda grossa presa entre o areal e a bóia que flutuava nas águas assanhadas. Mergulhara e subira à superfície repetidas vezes, as mãos e os braços doendo de força ao longo da corda, cada centímetro arrastado esfolando-lhe os dedos gelados e apoderando-se pouco a pouco da distância que a separava da areia. Acabara por cair extenuada em cima de um tapete de algas escorregadias, como se fosse, também ela, uma alga lançada pelo ronco medonho de uma onda sobre o areal.

Nesta tarde de Outono ela está só, encostada a uma mesa coberta com uma toalha delicada de pedra que abana ligeiramente com a brisa. Ao longe, na vastidão da praia, o mar e o homem que não gostava de romãs.
M

(2005)

sábado, 27 de junho de 2020

DO QUE GOSTO 14


Foto de S.  (A lata)

É tudo uma questão de lata!


A boca escancarada, a língua de fora, qual criança zangada, ou provocadora... Sim, porque por vezes isso não é mais do que o linguajar sob a forma de uma provocação a quem a olha do alto do seu tamanho de adulto. Será considerada provocação desajeitada por alguns, malcriada por outros, as duas coisas por ainda outros outros... Enfim, é tudo uma questão de lata!
M

(2004)

sexta-feira, 26 de junho de 2020

DO QUE GOSTO 13


Foto de S. (As veias do pescador)

 A Distância da Vida

Sentada no cais, contemplando o mar, ali o esperava todos os dias, o olhar poisado sobre a distância da vida. Pendurado ao pescoço, o colar cor de coral que ele lhe tinha oferecido.
M

(2004)

quinta-feira, 25 de junho de 2020

DO QUE GOSTO 12


Foto de S. (Ora abóbora!)
  
Esperteza Saloia

Saiu de casa ao romper da manhã, para que ninguém o visse. Antes que alguém as roubasse, era urgente levar para casa as bolas amarelas que cobriam o chão da horta. Nem tinha dormido, a matutar no negócio: partidas em quartos e bem guardadas no congelador… Mais uma despesa com que não contava, mas se no velho frigorífico não havia espaço…
Uma a uma, poisou-as em cima da mesa da cozinha e começou a parti-las.
– Ó homem, que estás tu a fazer? – perguntou ela.
Ele contou-lhe em surdina os sonhos da noite passada em claro, com o sorriso do futuro espalhado no rosto. Ela ouviu-o atentamente, o espanto saltando-lhe de dentro dos olhos.
– Encontraste o sol no nosso quintal?! Partido em bocados?! Queres congelar nacos de sol para quando ele desaparecer de vez do mundo?! Estás doido, homem! Isto é uma abóbora, não vês que tem pevides? E que rica sopa de legumes faço com ela!
- Ora abóbora! – resmungou ele. – Pensando melhor, antes assim. Sem sol, como é que eu tinha hortaliça na horta?
M

(2005)

quarta-feira, 24 de junho de 2020

DO QUE GOSTO 11


Foto de S. (No fio da navalha)

A Tentação do Corte

Suponho que haverá quem se recoste na cadeira do barbeiro e ali desdobre vidas que serão de seguida refeitas de modo diferente pelo discurso de outros, depois de estadia breve em ouvidos alheios. Correrão no entanto alguns riscos, imagino, pois que a mão viril de quem agarra a navalha poderá eventualmente segurar, também, a tentação de cortar o mal pela raiz. Ou seja: a barba e a palavra. Dependerá da barba e da palavra, claro. Sensibilidades à flor da pele, uma embirração, uma inveja que se insinua, uma indignação que sobe ao olhar de quem escuta (ossos do ofício), cansaço de mão ou de ouvido, sabe-se lá que mais por adivinhar. Uma questão de fio: o da navalha que se presume afiada, e o das palavras que se desenrolam rápidas e aguçadas na ponta da língua do cliente, para que se não perca o fio à meada. Enquanto os movimentos circulares do pincel e do pensamento espalham espuma e tentação sobre a pele húmida onde a navalha abre carreiros de intenções desconhecidas. Mas há que ter contenção e salvaguardar a arte: que os sorrisos se colem então no espelho defronte da cadeira, enquanto a mão, agora já sem a navalha, absorve com toalha morna os restos de espuma.
O senhor que se segue
M

(2006)

terça-feira, 23 de junho de 2020

DO QUE GOSTO 10


Foto de S. (Espaços vazios)

A Forma Dançada do Nada que Foi

Dançava como ninguém.
Ajustava o corpo no vestido de seda rosada levemente pregueado, o sorriso suspenso entre os braços erguidos em arco, e rodopiava durante horas a fio ao som da música que só ela ouvia. Reclinada hoje numa cadeira sem espaldar, recorda melancolicamente a forma dançada do nada que foi.
O seu nome é Cármen.
M

(2005)