segunda-feira, 6 de julho de 2020

DO QUE GOSTO 24


Foto de S. (Homenagem a Carlos Paredes)

Sonoridades Entrelaçadas

Quando manifestei ao Sérgio as dificuldades que estava a sentir para conseguir escrever um texto que acompanhasse a sua fotografia com o título Homenagem a Carlos Paredes, ele respondeu-me com um ditado inglês: Honesty is the best policy. Em tradução à minha moda, para quem não conheça a língua, o sentido prático e o pensamento atento dos súbditos de Sua Majestade, direi: A melhor política é ser-se honesto.
É verdade, o melhor é confessar-me... Andava há dias a olhar para esta fotografia, incapaz de escrever uma única letra, e com um incómodo permanente atrás de mim. E sabia porquê: faltava-me conhecer para poder sentir. Nunca assisti a nenhum espectáculo ao vivo de Carlos Paredes e, quando o via na televisão, estava distraída. Não tão distraída, contudo, que não me lembre da sua figura discreta, e de certo modo imbuída de mistério, que, apesar da minha desatenção, me prendia o olhar, ainda que por alguns instantes apenas. Mas a vida tem destas coisas: passamos às vezes pelas pessoas e pelas realidades sem lhes prestarmos a atenção merecida. Atravessamos momentos como se eles não tivessem corpo, como se fossem invisíveis, e nós também, ao ponto de nem sequer nos vermos a nós próprios. Não conheço a razão de tamanha lacuna, deve haver tantas!
Mas, pensei eu, se gosto desta fotografia, se sei que o Sérgio gosta muito dela, se acho que a imagem e o título se completam, e eu não sou capaz de lhe dedicar uma palavra, tenho que remediar este percalço. Foi então que um amigo me emprestou um livro sobre Carlos Paredes e uma mão cheia de CDs para eu ouvir. Passei o fim-de-semana a escutá-lo atentamente e a sentir o que até hoje deixei escapar. Mas afinal que importa a distância do tempo, se formos capazes de viver um passado que é ao mesmo tempo presente?
Entro dentro da sala onde a luz de um holofote incide redonda em cima de um homem, figura única sobressaindo na escuridão do palco, rente ao silêncio dos espectadores. Debruçado sobre uma guitarra portuguesa, tem ele ali uma conversa entre mãos, sonoridades entrelaçadas que tocam os nossos corpos e nos deixam presos às cadeiras. Não ouso falar, as minhas palavras seriam intromissões num momento de tanta beleza.
M

(2005)

3 comentários:

bettips disse...

Cordas unidas e sem fim. Pauta de sons e tons até ao infinito que pressentimos.
1963 "Verdes Anos", aí me ficou o som de choro e interrogações dessa época.
Tão bonito descobrir e dar-lhe sentido!
B

Justine disse...

Manuela, não vou repetir-me em comentários semelhantes para todos estes posts fascinantes, mas o que penso é sempre: que fotografia exemplar! que texto adequado e tão bem escrito! que par de qualidade imbatível!
Pronto, é isso que sinto, e entendo a tua nostalgia...

Mónica disse...

tive a sorte de o ver ao vivo em Vila Real, já ele estava muito alheado, mas foi muito bom.