quarta-feira, 24 de novembro de 2021

A BELEZA DAS COISAS E OS NOSSOS CINCO SENTIDOS - 5. Tacto

Foto de M

O tangível e o intangível

Faz-nos falta o toque. Ele é meio de conhecimento e manifestação de afecto, a inexistência de beijos e abraços durante a pandemia provou bem como o toque é importante nas nossas vidas. É conforto, confirmação de união entre as pessoas, também confirmação da necessidade de verdade. Por alguma razão as crianças aprendem o mundo tocando na mãe e nas pessoas que lhe estão próximas e manuseiam os objectos até à exaustão da sua curiosidade. Mas, como todos sabemos, até em objectos apetecíveis somos muitas vezes proibidos de tocar. Aliás, essa regra existe na memória da infância de cada um de nós, ninguém nos deixou bater insistentemente com os brinquedos na mesa de vidro da sala porque aquele ruído nos intrigava, havia que evitar estilhaços cristalinos.

Na companhia de amigos, visitei em Setembro o B-MAD, Berardo – Museu Arte Deco em Lisboa. Visita guiada, número limitado de pessoas, alguns cordões vermelhos vedando o acesso ao interior de certas salas com espaço reduzido, aproximações arriscadas, compreensível, mas frustrante por vezes só poder olhar de longe. Lindo o edifício, linda a exposição, obras magníficas que apetece afagar de tanto gostarmos delas, para tentarmos imaginar o que os seus criadores terão sentido ao realizá-las, para as sentirmos melhor dentro de nós. Do grupo de fotografias que consegui tirar, escolho a deste quadro que me chamou particular atenção pela imagem e pelo local em que estava pendurado, visível apenas de relance ao passar, o que me leva a pensar na relação que pode existir entre a beleza das coisas, o tangível e o intangível.

M

(Quadro com o título Figura Dupla, de cerca de 1928, é do pintor belga René Capouillé, 1885-1944)

quinta-feira, 18 de novembro de 2021

A BELEZA DAS COISAS E OS NOSSOS CINCO SENTIDOS - 3. e 4. Paladar e olfacto

Foto de M
 
Limitações e a magia da memória

Coitados, o paladar e o olfacto são quase inexistentes em mim. Quando era criança manifestavam-se, mas nunca foram muito marcantes. Infelizmente têm vindo a perder qualidade ao longo dos anos, vale-me a memória do que cheirei e provei ou, se inspirar fortemente, com o nariz quase colado ao que me é posto à prova, consigo quase salvar o momento. Quase, digo eu, às pitadas deste ou daquele condimento especial de chefe de cozinha contemporâneo não chego. É verdade, uma pena. Um caso recorrente é sentir o cheiro de uma lareira acesa a crepitar apenas quando vejo a imagem na televisão ou no cinema.

Por causa das minhas limitações atrás descritas, trago agora até mim o meu paladar e o meu olfacto através das memórias que deles me oferece este quadro de Maria Fernanda Amado. Pendurado que está na minha sala, olho-o e penso nele a aldeia resguardada entre montes e vales onde passava férias em criança. A minha aldeia não era exactamente assim, existiam apenas cinco casas, pintadas com cores menos exuberantes, e oito moradores permanentes que foram morrendo deixando ruínas, mas a vista que eu tinha, e tenho, do alto da estrada que desce até lá é semelhante a esta. Vejo fumo a sair das chaminés e o cheiro da chanfana e das sopas a apurar lentamente no fogão a lenha na cozinha do Senhor Américo e da Senhora Aida faz-me crescer água na boca. Ali adiante, debaixo do telheiro de nossa casa, estamos sentados à mesa de madeira tosca, saboreamos maçarocas de milho mornas, tenros os grãos ainda em leite, escorre-me a manteiga da boca, dos dedos, adoro. Colhi as espigas na caminhada matutina pelos campos, tão leve o ar, e dobrei folhas verdes dos eucaliptos para melhor lhes sentir o aroma. Tanta coisa mais encontro naquelas manchas! São mágicas.

M

sábado, 6 de novembro de 2021

A BELEZA DAS COISAS E OS NOSSOS CINCO SENTIDOS - 2. Audição

Foto de Estúdio B & M
 
Sonoridades

Orelha-ninho, quase invisível por detrás do cabelo, de vez em quando espreita, discreta e atenta, como convém a um órgão responsável pela captação dos sons. 

Rejeito falar agora de sons desagradáveis, de frases soltas carregadas de ódios que pairam nas bocas das pessoas, nas ruas, nas televisões, nas rádios. Nada disso me leva à beleza das coisas. Prefiro dar atenção ao gorjeio do pássaro que me acorda pela manhã, nem sei onde está, talvez nalguma das poucas árvores das redondezas. Não precisa de palavras, basta-me o seu canto a anunciar-me a hora de levantar. As palavras aparecem amiúde vindas de outros lados, nos timbres das vozes de quem as diz: Bom dia Mãe! O telefone é generoso, toca para unir ouvidos e pensamentos na distância. A proximidade física chegará noutro momento: Avozinha. Delicioso ser chamada assim, com a voz da ternura. Os meus ouvidos sorriem, sinto dentro de mim o aconchego das coisas simples nos dias que se vão abrindo oferecendo-me o seu tempo. Existe espaço para revisitar hoje Mahler na Sinfonia nº 2. Não é o mesmo que ouvi-lo no CCB ou na Gulbenkian, aqui o prazer é solitário, não devo aumentar o som até aos limites máximos, a minha instalação sonora até o permitiria, mas sei lá se aos meus vizinhos lhes apetece ouvir a música que eu oiço neste auditório particular. Aproveito o que tenho de bom, programação escolhida ao gosto do momento, intervalo incluído, carrego no botão no fim do último andamento antes de escolher outro CD ou atender alguma voz amiga que me procure. Sonoridades e a beleza das coisas ao meu alcance.

M