quarta-feira, 8 de janeiro de 2020

260.


Foto de M
Já cá faltava o pássaro encarrapitar-se no bengaleiro! Escolheu este poleiro improvisado para passar a noite de ontem em vez do cantinho no parapeito da janela da sala de estar onde costuma aconchegar-se. É capaz de sentir a falta de jardins espaçosos com árvores frondosas onde pode saltitar de ramo em ramo. Bem sei que os tectos de uma casa escondem o céu, são de certo modo restritivos para quem aprecia o ar livre, contudo tive sempre o cuidado de o deixar à solta por aqui. Provavelmente num desses seus voos viu o chapéu de palha e pensou que eu o usaria quando saísse de manhã. Uma bela oportunidade para fugir... talvez viajando na minha cabeça... ninguém daria por isso, andam todos na rua com os olhos postos nos telemóveis, indiferentes aos tropeções provocados pelas pedras soltas nos passeios. E ainda que alguma pessoa reparasse nele não acharia estranho aquele ninho ambulante sobre a minha cabeça, há tantas originalidades, tantas evasões à rotina, não é? Compreendo que o Chapim Real se sinta um pouco constrangido neste meu ambiente urbano de cidadã comum. Encontrei-o dentro da loja do Museu Gulbenkian, entre pássaros de diversas linhagens, com nomes e características diferentes, apaixonei-me por ele e trouxe-o comigo, mas parece-me que nunca viveu completamente feliz aqui, provavelmente saudoso do seu jardim, de outros ares e dinastias. Raramente pia, apenas quando as crianças da casa ou eu lhe apertamos suavemente a barriga, para nós um gesto carinhoso, se calhar desconfortável para ele. Enfim, já não sei qual de nós os dois confundiu a realidade com a fantasia, nem quero saber.
M