quinta-feira, 30 de março de 2023

Teoria dos Cinco Elementos - Água (*)

 Foto de M

Augas Santas, Ourense, Espanha. Caminhando por um dos Caminhos de Santiago de Compostela. Inesquecível.

(*) A minha participação na proposta da Mónica para este mês no Palavra Puxa Palavra.

segunda-feira, 27 de março de 2023

Pensando em água e não só

O Aquário

     Lá vem ela com o ar adormecido de todas as manhãs! E eu que espere, às voltas neste espaço exíguo. Hoje vestiu o roupão do avesso – ih! ih! – parece-me bem que acordou num daqueles dias em que a cabeça ficou noutro sítio. Agora anda à procura dos bolsos, nem repara que eles estão virados para dentro. Claro, é um gesto tão habitual nela… Então, voltas para trás? Pois, julgas que deixaste a chave no quarto. Estás enganada, com certeza que a tens dentro do bolso, juntamente com o lenço de assoar e o frasco das gotas para o nariz. E o que tu não percebeste ainda é que vestiste o roupão do avesso. Não me admiro nada. Aposto… Com quem se vivo aqui sozinho neste mundo silencioso? Lá transparente é ele, este meu mundo, porque ela é muito cuidadosa, mas de que me serve? Aposto na mesma, aposto que a culpa foi tua, Mila. Estás até às tantas da noite a ver telenovelas e depois, quando te vais deitar, o sono é tão grande que só pensas em dormir. Desconfio que atiras o roupão para cima da cadeira aos pés da cama e nem te preocupas se ele fica direito ou torto. Bem te oiço a falar sozinha no teu quarto: Não me importo que caias, daí não passas, porque o chão não tem buracos!  Aí vem ela outra vez, oiço-lhe os chinelos a arrastar pelo chão.

    A cara enorme, os cabelos desgrenhados de uma noite mal dormida tapavam agora a pouca luz que incidia sobre a minha casa aquática. Ui, que arrepio! E rio-me. Vivo dentro de água e falo de arrepios! Bem sei que a conheço há muitos meses, mas que querem, ainda me assusto quando vejo esta carantonha que me espreita.

     Dou mais uma volta dentro deste meu universo sem ruído e escondo-me atrás de uma alga. É ali o meu posto de observação desde sempre. Toda esta cerimónia do meu pequeno almoço segue diariamente os mesmos rituais. Conheço-lhes perfeitamente a sequência. Depois de Mila me ter tirado por instantes aquele raiozinho de sol que me aquece através do vidro do aquário já sei que vai abrir as portadas interiores da janela. Deixa-as sempre entreabertas. E não deve haver vizinha nenhuma nas redondezas que não saiba que ela nunca as fecha completamente porque gosta de poder espreitar o luar quando se levanta em noites de insónia.

     Bem, parece que é desta que me traz o pequeno almoço. Acabou de escancarar a porta do armário que muito range de velhice toda ela. (Felizmente encontrou a chave!) Mas isto ainda demora o seu tempo. Primeiro vai remexer as caixas dos medicamentos que estão guardados na primeira prateleira. É uma desorganizada! Pois se sabe que precisa de tomar o laxante com o café da manhã – “de cevada”, diz ela – por que razão não o põe à vista? E depois desata a falar-me das doenças que a afligem, como se eu a ouvisse! (Por acaso até oiço, ela é que não faz ideia nenhuma que a oiço). E mostra-me as caixas dos comprimidos: Olha, não posso esquecer-me de tomar este ao almoço, por causa da minha memória, que anda pelas ruas da amargura. Não percebo, então porquê que a deixa ir para as tais ruas, se lhe faz tanta falta? É este inferno todas as manhãs! Eu, que não preciso de medicamentos, sou obrigado a ouvir aquela lista de nomes esquisitíssimos que mesmo um farmacêutico tem dificuldade em decorar! Finalmente oiço o barulho da caixinha com a minha comida. Techeteche… techeteche… techeteche…  

     Olá Vermelhinho, cá estou eu! E a carantonha de novo ali, sufocante, os olhos enormes em busca de mim. Mila bate agora levemente no vidro do aquário. É um gesto habitual nela, para me obrigar a sair do meu esconderijo. Faço-lhe a vontade e rodopio por entre as algas coloridas da minha casa até ao momento em que no lugar da carantonha aparece apenas um sorriso enorme. Um pouco distorcido, claro, mas é um sorriso. Atravesso então a transparência desta água simultaneamente protetora e possessiva em busca do meu palco flutuante e nele me entrego à minha dança de bailarino solista. Caem flocos de neve. Não os como de imediato. Espero que Mila se afaste e diga, com os olhos rasos de lágrimas: Ainda um dia hei-de ir ver a neve a cair.

M

quinta-feira, 23 de março de 2023

Teoria dos Cinco Elementos - Metal (*)

Foto de M

Praça da Figueira, Lisboa.

(*) A minha participação na proposta da Mónica para este mês no Palavra Puxa Palavra.

sábado, 18 de março de 2023

Fausto

     Vendia a minha alma por um colo! Há muito que a ideia se lhe enroscara no corpo de tanto a pensar. Vivia dia e noite na imobilidade de uma prateleira de vidro frio pregada na parede daquela loja onde tudo o que pudesse ter tido vida morrera de tédio. Entusiasmara-se a princípio com o lugar que lhe fora destinado e amiúde se revia na superfície brilhante que lhe servia de espelho, mas o tempo embaciara-lhe o desejo. Entregara-se tristemente ao desencanto cerrando os olhos, para só lhes abrir uma fresta sempre que a campainha da porta tilintava curiosidades que varriam o espaço apertado em que morava e que depressa dele se cansavam. Todavia, até desse abrir e fechar de olhos desistira Fausto e quase os colara de vez, cobrindo-os com uma das patas e forçando a cabeça de encontro ao pó que lhe servia de cama.

     Olha a gata! pareceu-lhe ouvir na lonjura enevoada dos seus pensamentos.

     A gata?! Rodou a cabeça 90 graus e espreitou: fixavam-no atentamente dois olhos verdes poisados no rosto de uma menina de cabelos negros atados por uma fita de seda vermelha.

     - É muito bonito, não é, Ágata? Gostavas de o levar contigo? – ouviu perguntar.

     Ah, agora percebo! Pois não podia ser uma gata, que está lá fora no vidro da montra um papel a proibir a entrada de animais!

     Foi então que Fausto se sentiu a voar, como se tivesse também ele asas de pássaro. E tremia. Não sabia se por causa do medo se pela esperança naquele voo que o arrastava do vidro frio e inerte para a concha quente e macia das mãos de uma menina.

M

quinta-feira, 16 de março de 2023

Teoria dos Cinco Elementos - Terra (*)

Foto de M

Cores da Terra.

M

(*) A minha participação na proposta da Mónica para este mês no Palavra Puxa Palavra

quarta-feira, 15 de março de 2023

Provocações mútuas

Dona Consciência

Vê-se bem que não limpas o pó… Que inconsciência! – disse a Dona Consciência das cabeças adultas. E continuou o sermão: - Não tens mais nada que fazer do que andar a brincar às internetas? No meu tempo não havia tempo para…

- No seu tempo não havia tempo? – interrompi eu com ar de gozo, olhando-a de alto a baixo, porque ela era enorme, uma perfeita avantesma. - Então decida-se lá, o tempo era seu ou não? Não percebo! E fique sabendo que não são netas. Eu ainda não tenho nem netos nem netas, isso é para os meus amigos adultos.

- Não sejas atrevida! – respondeu Dona Consciência, inchando-se-lhe e empurrando-se-lhe o afogueamento dentro das barbas do espartilho até se pendurar ufano nas suas duas bochechas até aí pálidas de ciência adquirida com s no meio.

Estás quase a perder a tramontana, que eu bem te conheço!, pensei com os meus botões, porque eu gosto muito de coleccionar botões para depois conversar com eles. Há-os com dois buraquinhos, com quatro e sem nenhum. Esses têm apenas um pequeno pé. Eu acho mais graça aos que têm furos, sempre se pode olhar para mais sítios, os outros ficam sem ar, sempre agarrados aos tecidos onde os pregam. Eu julgo que nem pondo o pé de lado eles conseguem ver alguma coisa.

- És uma perfeita criança! – disse a Dona Consciência olhando-me com desdém, ao mesmo tempo que deixava que o seu sorriso cheio de tramontana espreitasse por entre os seus lábios trémulos, que mais pareciam duas minhocas rosadas. – Vê se cresces!

Eu calei-me e fiquei a olhar para mim à espera de me ver crescer. Será que se vê?

M