segunda-feira, 24 de março de 2025

Dentro do estômago do pensamento

Clair de Lune

(Foto de S.)

   Claire de Lune

Passam as histórias de boca em boca, de ouvido em ouvido, de fantasia em fantasia. Comem-se frases, sílabas, letras. Às vezes. Conforme a boca de quem as conta, conforme o ouvido de quem as ouve, conforme a imaginação de cada um. Mastigam-se e engolem-se. Ficam dentro de nós, em pedaços separados, dentro do estômago do pensamento. Quem sabe então se este Clair de Lune que paira entre as ruínas de um mosteiro no alto da Serra de Montejunto não terá sido o nome de alguém a quem, na ânsia de lhe contar e conhecer a vida (ou de a desprezar), os habitantes das aldeias vizinhas terão feito desaparecer a letra “e” no final do nome? Se assim aconteceu, embora esta ideia não seja mais do que uma suposição minha sem qualquer fundamento, confesso que me apetece acrescentar-lho de novo e chamar-lhe Claire de Lune. E imaginar uma rapariga de cabelos soltos vagueando pelos montes em noites de luar, pela mão de Claude Debussy. Apesar das ruínas. Apesar do tempo que se desmorona mas que igualmente se reconstrói ao modo de cada um. E porque a lua está presente também nos nossos dias, no mistério do que nos toca e se deseja.

M

(2006)

domingo, 9 de março de 2025

Postigos

Foto de M 

Gosto de postigos em portas exteriores, dão-lhes uma certa leveza e graciosidade. Reparei neste numa rua em Moura. Ao vê-lo entreaberto, confesso que me apeteceu espreitá-lo mas, por respeito para com os moradores, que nem sequer sei quem seriam, fotografei-o discretamente de esguelha e continuei o meu caminho.

M

Foto de M

Este postigo, pelo contrário, estava encerrado. Não soube quem resguardava por detrás dele. Encontrei-o na estação de comboios de Sintra. Um posto de venda de bilhetes. Eventualmente na hora de almoço do funcionário ou funcionária. Ou não seria ainda hora de abertura ao público. Apesar de tão mal sentado na ponta da pedra pintada nos azulejos da parede, coitado, chamou-me particular atenção a expressão feliz do menino angelical com duas flores na mão. Não faço ideia se as apanhou perto dali, no Parque da Liberdade, e foi punido pela ousadia e para sempre tornado estático pelas mãos do artista contratado para a obra. Seja como for, se a sua intenção tiver sido colher um raminho de flores para oferecer a alguém, o seu gesto ficou registado per saecula saeculorum. E será sem dúvida inspirador para quem por ali passar.

M