segunda-feira, 28 de setembro de 2015

220.


Foto de M 

Gosto de palavras. Têm corpo de gente, gestos de gente, voz de gente. E riem, e dão gargalhadas. Choram também, desesperam. E espantam-se tanta vez. Algumas insultam, coram de vergonha os seus alvos, ou enraivecem-nos e fazem ricochete, ui! Outras guardam silêncio escondendo-se dentro da boca de quem as não diz ou no pensamento de quem as pensa. Às palavras que se alinham para desalinhar sentidos acho particular graça: desenham sorrisos discretos nos olhos, nos lábios, nas rugas marcadas. Das palavras pacientes quase me esquecia de falar. Presas dentro de livros, esperam que alguém repare nelas e lhes faça companhia. Estabelecida então uma forte empatia, qualquer desvio de atenção dos seus amigos leitores em momentos de pausa de leitura as leva a seguir-lhes o olhar para lá das páginas abertas sobre a mesa da esplanada. (Aposto que até encontram cenários iguais ou semelhantes aos que compõem os capítulos em que vivem. Cenas, como agora se diz.) A propósito de cenas lembrei-me dos antigos mini teatros ambulantes de praia onde fantoches com cabeça de pau e voz esquisita se batiam freneticamente à paulada. Hoje em dia as pancadarias e os cenários serão outros, certas palavras desapareceram do vocabulário corrente, mas em geral as mais usadas não divergem muito dessa época, apenas a eliminação de determinadas consoantes e acentos as transfigura. Por mor de acordos e desacordos e não só. 
M

sábado, 19 de setembro de 2015

219.


Foto de M

Desproporção. A palavra surgiu no meu olhar mal cheguei ao terreiro repleto de gente entre o Palácio do Louvre e o Jardim das Tulherias e os vi ajoelhados no chão, como se rezassem, indiferentes aos passos de quem atravessava aquela aparente terra de ninguém. Eram seis, com as suas lojas ambulantes de chapéus, óculos escuros da moda, bugigangas e souvenirs para todos os gostos. Organizavam, uma vez mais, os objectos que breves momentos antes, suponho que a um sinal de aviso combinado, tinham enrolado à pressa nos seus panos-montras como precaução para uma fuga iminente. A polícia não apareceu, pelo menos por agora podiam sossegar. A escassos metros, as sólidas paredes do Louvre contrastavam com a fragilidade da existência humana. E eu, testemunha muda, reflectia sobre a realidade que me cercava e me afligia. Este homem em particular impressionou-me. Senti-me comovida pela delicadeza com que pegava nas pequenas réplicas da Torre Eiffel e as colocava em pé, bem alinhadas, tentando cativar o olhar dos transeuntes. Pensei, procurando encontrar algum consolo dentro de mim: talvez só por amar muito o que tem para vender ele consiga sobreviver entre as dicotomias da cidade imensa.
M