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Há momentos em que só as pedras e as flores rente ao chão conhecem a voz dos nossos passos. Assim pensei quando, ao olhar esta fotografia, encontrei nela semelhanças com a imagem de alguém que em desespero se passeia para trás e para diante sobre um caminho estreito aparentemente sem saída.
Mas este universo dos passos é mais vasto do que os labirintos em casa própria e por isso associei depois a esta primeira imagem a realidade com que alguns noticiários de televisão nos apresentam a presença humana neste mundo. Haverá certamente intenções muito particulares no modo como o fazem e na escolha deste ou daquele plano, um misto de exigências profissionais impostas e a sensibilidade de quem olha os outros através da lente de uma máquina. Interrogo-me. Será por causa de tudo isso que tantas vezes nos são mostrados apenas as pernas e os pés das pessoas fotografadas? Uma questão de respeito, uma tentativa de proximidade contida? Ou precisamente o inverso e da necessidade de afastamento perante a impossibilidade de proximidade resulta a rejeição dos corpos no seu todo? Não sei, mas parece-me a mim que desagregar assim os outros se torna ainda mais confrangedor para quem vê essas imagens. Como se, adivinhando nós o sofrimento e o desalento, ou a raiva, naqueles corpos sem rosto, fossemos impedidos de pousar o nosso olhar no deles. Revejo na minha memória as botas pesadas de soldados pisando destroços e ervas queimadas pelo desaforo das guerras, esquecido o gesto natural da coerência do amor no ser humano. Deixada para trás, ignorada assim, a angústia de gente fugindo por ruas esboroadas pelo ódio, arrastando a nudez dos seus pés ou os farrapos com que os protegem. Exangues, alguns morrendo diante de nós em poças de sangue vivo, escondido o olhar que sabemos assustado, mostrados apenas as pernas e os pés. E o seu silêncio. Porque só o chão por onde passam a caminho da vida ou da morte conhece a voz íntima dos seus passos.
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