Há momentos em que só as pedras e as flores rente ao chão conhecem a voz dos nossos passos. Assim pensei quando, ao olhar esta fotografia, encontrei nela semelhanças com a imagem de alguém que em desespero se passeia para trás e para diante sobre um caminho estreito aparentemente sem saída.
Mas este universo dos passos é mais vasto do que os labirintos em casa própria e por isso associei depois a esta primeira imagem a realidade com que alguns noticiários de televisão nos apresentam a presença humana neste mundo. Haverá certamente intenções muito particulares no modo como o fazem e na escolha deste ou daquele plano, um misto de exigências profissionais impostas e a sensibilidade de quem olha os outros através da lente de uma máquina. Interrogo-me. Será por causa de tudo isso que tantas vezes nos são mostrados apenas as pernas e os pés das pessoas fotografadas? Uma questão de respeito, uma tentativa de proximidade contida? Ou precisamente o inverso e da necessidade de afastamento perante a impossibilidade de proximidade resulta a rejeição dos corpos no seu todo? Não sei, mas parece-me a mim que desagregar assim os outros se torna ainda mais confrangedor para quem vê essas imagens. Como se, adivinhando nós o sofrimento e o desalento, ou a raiva, naqueles corpos sem rosto, fossemos impedidos de pousar o nosso olhar no deles. Revejo na minha memória as botas pesadas de soldados pisando destroços e ervas queimadas pelo desaforo das guerras, esquecido o gesto natural da coerência do amor no ser humano. Deixada para trás, ignorada assim, a angústia de gente fugindo por ruas esboroadas pelo ódio, arrastando a nudez dos seus pés ou os farrapos com que os protegem. Exangues, alguns morrendo diante de nós em poças de sangue vivo, escondido o olhar que sabemos assustado, mostrados apenas as pernas e os pés. E o seu silêncio. Porque só o chão por onde passam a caminho da vida ou da morte conhece a voz íntima dos seus passos.
M
domingo, 24 de agosto de 2008
79.
Foto de M
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20 comentários:
Desconhecidos, é assim que são apresentados. Se olhares essas pessoas e as vires, totais, não as conseguirás esquecer. Angústia anónima, é o que nos servem. Ou abuso e exposição da privacidade. Entre as duas coisas... **
Considero a exposição que nos impingem por aí, obscena.
De tanto horror, habituar-nos-ão a ir comendo batatas ou pipocas, como se aquilo fosse cinama.
Como diz VV.
Coisas sérias são por ex. o documentário sobre a AMI: dicotomia desespero/esperança/alerta. Pode sempre fazer-se algo além de dar notícias. Tenho para mim que isso é a verdadeira liberdade de expressão e não o ganhar audiências e dinheiros extravagantes com a guerra e o sofrimento. Exijo isso dum serviço público e já tudo se mistura!
O teu texto, a rasar os olhos nas pequenas coisas de chão, provocam mil pensamentos pequenos e explosivos.
Bj
Um grito de revolta pungente o teu texto, que eu agarro e faço meu.
Mundo sem pudor nem respeito, este em que vivemos/sofremos, por nós e pelos outros.
Excelente o seu texto!
Você escreve muito bem... Me fez refletir sobre algo que ainda não tinha colocado reparo...
Beijos de luz e uma semana muito feliz!
um beijo a ti...
à tua grande sensibilidade............
Passei por aqui, procurando não me desequilibrar sobre o muro de pedra, como sempre fazemos quando somos garotos, pois nunca andamos no passeio, na estrada, no caminho, mas sempre em cima dos muros, dos espaços estreitos, num desafio constante.
Como diz a Bettips o que nos impingem é obsceno, como se não houvesse bons actos, exemplos, factos, acontecimentos, descobertas,também para relatar. Não são notícia, dizem eles e embotam facilmente os nossos sentidos com a habitual brutalidade, sem respeito pela intimidade e sofrimento.
Estar alerta, é nossa obrigação.
Bjo
Adorei o post. parabéns!
Passo para te (re)ler. Beijo, M.
Entrei neste teu universo dos passos, em Bordeaux, já cansada de tantas horas de viagem e por isso saí em pézinhos de lã, sem comentar.
São profundas estas tuas reflexões, focam um aspecto em que nunca tinha reparado, as pernas e os pés sem rosto, deste nosso mundo onde a violência já ganhou um estatuto de normalidade tão assustador!
Tive o meu primeiro SELO!
Beijinhos.
Sábias palavras. Sábio silêncio!
Sábias palavras. Sábio silêncio!
belo e perfeito - real!!
beijos meus
Edu
fANTÁSTICO COMO DE UMA FOTO APARENTEMENTE SIMPLES PARTES PARA REFLECÇÕES TÃO PROFUNDAS E DE PENSAMENTOS BEM CERTOS!
BJS E BOM DOMINGO
TD
de regresso,
um grande beijo para ti........
vamo-nos vendo (lendo) por cá...
os corpos mutilados são apenas "cenário" na "sociedade do espectáculo". uma forma. um vazio... que nos subjuga!
e sobre o que importa reagir. (mais que reflectir). como o teu inteligente e sensível texto.
grato pela emoção.
Intensa reflexão.
Comovente, também.
Sinto o que escreves e dizes.
Já vivi num país em tempo de guerra.
Destroçante.
Beijinhos.
... os desastres (naturais e os outros) mais os conflitos (armados e desarmados), são material que fazem as delícias(?!) da comunicação social dos nossos dias. Porque as audiências sobem em flecha e não se pode perder tempo com temas de raiz cultural ou pedagógica que não... facturam.
Sendo verdade que não gasto nem gosto destas estratégias mediáticas, também não é menos verdade que continuo a testemunhar que a obsessão de muito boa gente (as filas de carros em marcha lenta para apreciar(?!) um acidente são apenas um indício) é tal, que a sua disponibilidade para um banho de sangue à hora do almoço ou do jantar é mais que muita.
Pelo sim pelo não, eu que ando sempre de máquina preparada, capto todas as partes do corpo de quem fotografo: pernas, braços, pés, mãos, pestanas, olhos, narizes e até corações. Para que não se diga que sou anatomicamente parcial...
Talvez só o Amor possa olhar-nos nos olhos até à morte. Sem culpa e sem medo.
Ah que me fazes não arredar o olhar desses caminhos pisados pela graça e desgraça dos homens!
Beijo grande.
muito interessante a tua reflexão. lembrei-me de uma história de ficção que conta a vingança de um soldado que foi fotografado num momento de retirada. a dita fotografia correu o mundo e valeu ao fotografo um prémio (o livro tem reflexões muito interessantes sobre o acto de fotografar) e a má sorte do fotografado.
esta história fez-me logo lembrar as famosas fotografias de guerra e de pobreza que as pessoas em geral "adoram" e "premeiam" mas que não são mais que um atentado à privacidade dos fotografados.
e agora a tua reflexão fez-me pensar outra vez no mesmo assunto: se por um lado mostrar os pés e pernas é mais inócuo por outro lado tb "limpa" as fotografias das coisas feias e más da condição humana.
pois é Manuela não sei para que lado pender :D
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