sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

163.


Foto de M

Era um dia frio de Dezembro num terminal de camionetas em Lisboa.
Estava de costas, não muito afastado de mim, quando reparei nele. Homem de estatura média, o forte cabelo branco cobria-lhe completamente a cabeça inclinada sobre o ombro direito, como se alguém a tivesse aparafusado ali. Vestia um casacão gasto mas aparentemente quente e abaixo das calças um pouco curtas, a proteger-lhe parcamente os pés, os sapatos abertos deixavam entrever umas meias finíssimas, passajadas até ao limite do buraco mais pequeno. A certa altura virou-se e cruzei o meu olhar com o dele: impressionante a dignidade que transparecia do seu rosto calado.

Não tardou que a camioneta se aproximasse da paragem. Respeitada a ordem da fila para entrar, cada um ocupou então o seu lugar dentro dela. Já eu estava sentada quando vi o homem pedir dois bilhetes ao motorista. Percebi nesse momento que viajava acompanhado pela senhora que, apoiada em duas muletas, tinha acabado de se acomodar na fila à frente da minha, do outro lado da coxia. O homem sentou-se a seu lado. Numa das mãos segurava dois sacos, na outra o telemóvel, e nessa posição permaneceu até ao final da viagem. Aparentemente alheios à presença um do outro, ela lendo uma revista, assim se mantiveram, mudos e imóveis, durante os quarenta minutos do trajecto. Só quando, em determinada altura, ele levou o telemóvel ao ouvido, como se quisesse certificar-se de que tinha tocado, e endireitando por breves instantes a cabeça, a vi seguir-lhe o movimento do braço. Nada dizendo um ao outro, os olhos dela colaram-se de novo à revista e a cabeça dele desceu até ao ombro.
Chegados a Mafra, destino para a maior parte dos passageiros, apeámo-nos. A senhora, apoiada nas muletas, afastou-se vagarosamente, enquanto o seu companheiro de mutismos se demorava junto da porta de saída da camioneta. Esperava pelo homem cego que viajara connosco acomodado no banco à frente do meu, a cabeça sempre encostada ao vidro da janela, a bengala enrolada no pulso como tesouro que se não larga, e que me parecera perdido num mundo desconhecido para si. Vi que lhe deu a mão para o ajudar a descer os degraus até alcançar chão firme. Sem uma palavra, apenas um gesto a ligar o mundo de silêncios que falava dentro de ambos.
M

2 comentários:

Anónimo disse...

Traduzido, como tão bem sabes fazer ao milímetro da pele, o minuto comum,
toda a gente que entra e sai
do autocarro que nos coube. E em que poucos reparam ser tão breve, ah... e tantas vezes calada, a viagem.

Vi.
bjinho da berrips

R. disse...

Silêncios certamente preenchidos por inúmeras vozes.

Um olhar atento, sensível e necessário.