sexta-feira, 2 de dezembro de 2011

Memórias 3.


As manas no ballet
(Foto de S.)

Linhagens e Cristas

Pela frontaria desta casa e pelo bairro em que está inserida na cidade, presumo que existisse nela aquele costume antigo de tratar as empregadas por criada de fora e criada de dentro. Denominação curiosa esta do dentro e do fora que fazia parte dos estatutos de algumas das famílias mais abastadas. Nos contextos sociais dos nossos dias, ainda que em situações semelhantes, terá outros contornos e outras designações. Não sei exactamente que funções domésticas desempenhavam nas linhagens de outros tempos. Tenho uma vaga ideia que à criada de dentro eram atribuídos os trabalhos mais pesados, como as lavagens de roupa, e as azáfamas na cozinha por causa das exigências dos patrões em questão de paladares e condimentos. Ainda que frugal, impunha-se que a refeição fosse gostosa e bem apresentada em travessa de porcelana fina ou de prata.
À outra criada, a tal de fora (embora vivesse dentro), estaria entregue, tanto quanto sei, o arranjo dos quartos, a limpeza do pó dos senhores, o atendimento à porta de entrada e às visitas, e o serviço à mesa. O que, dada a variedade de tarefas e de sujidades quotidianas, implicava a necessidade de um traje especial e condigno para servir os almoços e os jantares. Uma farda, claro, ainda que caseira e íntima (embora fosse criada de fora): bata preta, avental com folho de renda ou bordado inglês bem engomado, punhos brancos, e uma crista na cabeça que se reflectia nas salvas de prata. Talvez uma oportunidade para ela se ver a si própria a meio de um dia gasto em benefício dos outros. Nada mau encontrarmos alento na imagem de nós mesmos, ainda que pouco nítida. Mas voltando à indumentária, por vezes também ela calçava luvas brancas. Não para passear pelas redondezas, como a sua senhora, mas para pegar no serviço de chá, à hora das torradas e dos bolinhos.
Felizmente que, de um modo geral, as casas antigas tinham varandas. Acabada a refeição, as criadas retiravam tudo o que estava em cima da toalha branca de algodão e enrolavam-na nos braços como quem pega numa criança. Abriam de seguida as janelas e, apoiando-se no parapeito da varanda para se certificarem de que no passeio em baixo não passava ninguém, ofereciam as migalhas aos pardais que por ali esvoaçavam. Mas não só: juntamente com as pequenas sobras de pão atiravam também um sorriso demorado ao polícia de serviço na esquina da rua a catrapiscar as raparigas da vizinhança. E suponho que o fariam com o esmero que a qualidade de criada de fora com crista lhes proporcionava…
M

(Em 4 de Novembro de 2005)

4 comentários:

Justine disse...

Do outro lado do teu texto exemplar, há o roçagarr das sedas e o cheiro a alfazema...
(a foto,harmoniosa e inspiradora!)
Beijo

Anónimo disse...

Apenas
olhares e palavras perdidas na memória!
Assim achadas.
E não é que os enfeites em cima das janelas parecem a tal "crista" das criadinhas de antanho?
Associações oportunas da mente (ou das)
Bjinhos da bettips

Manuel Veiga disse...

e o magala com farda domingueira onde fica na fotografia?...

a tua sensivel arte de dizer. inimitável.

beijo

Licínia Quitério disse...

Um retrato de época perfeito. Sorri com o sorriso da criada "de fora". Sorri também, doutro modo, do momento de se ver a ela própria no espelho da salva. Cinematográfico. À la mode de M. de Oliveira!