terça-feira, 7 de fevereiro de 2012

O Prazer de Viajar - 71


Foto de M

«Os primeiros dias do desterro de Margarida correram suaves na Urzelina. Bem na Urzelina, não. A casa do capitão José Urbanino – como a conheciam ainda – ficava um pouco retirada da linha da povoação, apontando com os telhados baixos e longos, com a sua eira e o engenho, na direcção da «Serra» - a Serra vaga e toda lombar de São Jorge, mãe de milhares de vacas que parecem encarregadas de berrar de dor por ela e de milhões de vitelas enterradas no seu seio de fogo, virgens do garfo do gourmet.
Construída numa leve ondulação do terreno, a vivenda do barão via em baixo a chamada Torre Velha e a casa que servira de passal, relíquias dos rastos humanos que a grande erupção de 1808 soterrara na lava.»

«Ao poente estendia-se a terra lambida e negra que o grande respiradoiro de repente aberto na ilha amontoara ali – a Queimada – com um ar de capuz de penitente envolvido num crime fantástico, e que por isso mesmo o povo chama nas ilhas «mistério», pois todas elas são dadas a esse fadário telúrico que não teve Abel nem Caim. A vegetação, porém, começava a ganhar o duelo travado há mais de um século entre aquele borralho negro e as forças escondidas no chão; e a urzela, o pinheiro, a ruivinha que pinta os queijos e as saias, o incenseiro de florinha cerosa e de baga melada vestiam de folhas e de pássaros a desesperada solidão.»

Mau Tempo no Canal, Vitorino Nemésio, Publicações Dom Quixote

Torre sineira da Urzelina (o que resta da igreja destruída pela erupção de 1808), Ilha de São Jorge, Açores

2 comentários:

bettips disse...

É na verdade um gosto muito especial acompanhar esta leitura. Sempre diferente!
Porque nos ensina tanto, sobrevoando a(s) ilha(s), o mar, as pequenas ervas. Entrelaçando tudo com o pensamento. E as fotografias.
Bjs

jorge esteves disse...

Se bem me lembro li o livro há duas mãos cheias de anos. E a verdade é que 'gostei paker-amba'. È boa ideia ir à estante...
abraços.

jorge