Linhas cruzadas
(Foto de S.)
A Turista
Não, esta não é uma história de fadas. Como aquela da princesa que ficou tolhida no encanto de um sono por tempo indeterminado, até ao aparecimento do príncipe encantado que a despertou com um beijo. Doce, presumo. E como falo de imaginários deslumbramentos, lembro ainda as caixas russas em forma de mulheres de sorriso colorido presas umas dentro das outras, ainda que aparentemente sob a forma de uma só figura. Há quem as liberte, por curiosidade, claro, mas mesmo assim sujeitam-nas ao alinhamento a que a sua própria escala de estatura as obriga no espaço a que habitualmente estão confinadas. Não sei se por conveniência de espaço, se pela ideia generosa de possibilitar a alguns o encantamento de desdobrar encantos dentro dos encantos. Um pouco ao invés da tal princesa que não teve de desdobrar nada dentro da vida, pois dormiu e acordou no mesmo espaço ad aeternum. Pelo menos é o que me sugerem os contadores de contos de fadas.A minha história é outra, é a de uma mulher que se dizia tolhida pelo desencanto. Encontrei-a há pouco no cais da estação de comboios, sentada num banco. Tinha a cabeça um pouco descaída sobre o peito, como se não pudesse segurar-lhe o peso, e os braços pareceram-me entrelaçados um no outro, atrás das costas. Invisivelmente atados, pois não vi corda alguma.
Estranhei vê-la ali. Costumava cruzar-me com ela pelas ruas do mundo, de mochila às costas, e até conversámos várias vezes, quando a ocasião se proporcionou. Intrigava-me, quando a conheci. Dava-me a ideia de uma turista de passagem por Lisboa mas, ao mesmo tempo, o sorriso divertido ou as respostas prontas deixadas em aberto levaram-me a crer que conhecia a minha linguagem perfeitamente e que seria residente neste país.
– Que faz aqui sentada? – perguntei, aproximando-me devagarinho.
– Como? – Ela entreabriu um pouco os olhos. – Quem é você?
– Não se lembra de mim? O meu nome é I…
– Imbecil, suponho… – interrompeu-me, agastada.
– Podia ser… – respondi-lhe, com um sorriso nos lábios. – Até podia chamar-me Imbecil, mas por acaso não acertou.
– Não acertei? Não acha a sua pergunta absurda? – E olhava para mim com um misto de irritação e de desafio. – Não vê que estou tolhida pelo desencanto?
– Confesso que me pareceu apenas cansada. Uma turista cansada… Costumávamos encontrar-nos por aí… Lembro-me de a ver de nariz no ar, sempre à procura… nem sei bem de quê. A sua mochila, aí no chão… Um dia falou-me do que guardava dentro dela…
– A minha mochila? Ah! Que importa? – Pela maneira de me olhar, pareceu-me que se recordava.
Um dia, sentadas num banco da avenida a refrescarmo-nos da caminhada, comemos juntas uma sanduíche e ela falou-me do que escondia dentro da mochila. Lembro-me que lhe achei graça. Alternava a trincadela no pão com fiambre com o que me ia mostrando: “Isto é alento, olhe aqui o ânimo, o encanto, a ilusão, o entusiasmo, este é o silêncio. Também faz falta, não acha? Preciso disto tudo, sabe. Umas vezes esvazio a mochila, porque gasto tudo, outras vezes são sobras que ficam de reserva. Depende daquilo em que tropeço, dos caminhos por onde vou, alguns cansam-me mais do que outros.”
– A sua mochila… Lembra-se? – Baixei-me ligeiramente para lhe pegar.
– Já não contém nada do que lhe mostrei um dia. Conhece o vírus das três letras? O “des”…
– O “des”? Perfeitamente. – Sorri. – Julgo que os meus dedos nem chegam para enumerar as várias doenças provocadas por ele. Despeito, desproporção, desqualificação, desrespeito, desamor, despromoção, desvalorização, desconsideração, desavergonhado… Bem, nesta última apareceu uma outra estirpe de vírus, o “a”… Não há antibiótico eficaz para ele… Por enquanto, claro. Valem-nos os avanços da medicina actual para debelar esta proliferação de enfermidades…
– Esse vírus é activo, estimula doenças em cadeia que se vão espalhando, é quase uma epidemia. O meu é de outra espécie, é restrito no seu ataque – respondeu-me rapidamente.
– Restrito?! – perguntei, admirada.
– Sim, fiquei tolhida. O vírus que atacou a minha mochila deixou-me desalento, desânimo, desencanto… Tirou-me a energia. Acha que há alguma coisa pior do que isso?
– Mas não a privou de tudo, pois não? O silêncio…?
– Ah, o silêncio está sempre calado, por isso ninguém deu por ele. Continua comigo, intacto. – Vislumbrei-lhe um olhar temporariamente divertido e provocador.
– Vá lá, nos tempos que correm traz algumas vantagens…
– Nada se aguenta eternamente sem mudança, pois não? Às vezes o silêncio também se cansa e adoece com falta de palavras ouvidas bem alto, noutros tons diferentes dos meus. Precisamos de treinar a voz, senão perdemos a capacidade de cantar.
– Um antibiótico de largo espectro será portanto o mais indicado… – Pisquei-lhe o olho.
– Afinal não é imbecil… – disse, provocando-me. – Gosto da sua companhia. Quase que apostava que sei como se chama…
– Pois sabe. Já nos conhecemos há muito tempo. Mas olhe, vou seguir o meu caminho que…
– Mas eu estou tolhida pelo desencanto, não vê? – Interrompeu-me. Pareceu-me preocupada por eu a deixar.
– Eu estou sempre consigo, só que às vezes esquece-se de mim. Vou prender-lhe entre os dentes a ponta desse fio que a tolhe.
– Entre os dentes?! – exclamou, admirada. – Dói.
– Não é uma corda, é apenas um fio. Quando conseguir rir um pouco, o fio é puxado pelo movimento do seu sorriso, o nó desfaz-se, e os seus braços ficarão livres, vai ver. A nossa vida é uma cadeia de gestos.
Ironia
M
(Publicado no meu antigo blog Fotoescrita em Fevereiro de 2005)