domingo, 28 de junho de 2020

DO QUE GOSTO 15


Foto de S. (O homem que não gostava de romãs)
 
Numa Tarde de Outono


Convidou-o a sentar-se consigo à mesa, mas ele recusou-se a fazer-lhe companhia, respondeu-lhe que não gostava de romãs. Como se gostar ou não de romãs tivesse alguma importância numa tarde em que ela lhe queria falar dos seus medos de criança! Um pavor que ficara para sempre colado à lembrança do bramido do mar, o seu corpo de menina batido pela fúria líquida, o medo escorrendo em remoinho pelos cabelos, apossando-se dela, engasgando-a. De quase nada lhe valera a corda grossa presa entre o areal e a bóia que flutuava nas águas assanhadas. Mergulhara e subira à superfície repetidas vezes, as mãos e os braços doendo de força ao longo da corda, cada centímetro arrastado esfolando-lhe os dedos gelados e apoderando-se pouco a pouco da distância que a separava da areia. Acabara por cair extenuada em cima de um tapete de algas escorregadias, como se fosse, também ela, uma alga lançada pelo ronco medonho de uma onda sobre o areal.

Nesta tarde de Outono ela está só, encostada a uma mesa coberta com uma toalha delicada de pedra que abana ligeiramente com a brisa. Ao longe, na vastidão da praia, o mar e o homem que não gostava de romãs.
M

(2005)

1 comentário:

Justine disse...

Quando as memórias infantis dos medos provocados pelo mar coincidem, a gente emociona-se - e foi o que me aconteceu ao ler o teu texto!