Foto de S. (Sal e Pimenta)
Sal e pimenta q.b.
Quem os visse de costas não saberia
de que se tratava. Eram duas figuras de loiça branca e formas
rectilíneas, coroadas com tampas arredondadas em metal cinzento,
perfeitamente iguais, distinguindo-se uma da outra unicamente pela
letra diferente que lhes adornava a barriga. Vistas de longe, mais
pareciam dois seres etéreos de cabelos prateados, vestidos com alvas
túnicas, viajando lado a lado pelo mundo em barco de madeira escura.
Exploravam desde sempre o universo dos sentidos, recolhendo
experiências, acrescentando alvitres, resolvendo questões
essenciais ao sucesso existencial que, por vezes, parecia em vias de
o não ser. Tinha sido intenção do artesão que os concebera
fazê-los exactamente iguais, à parte o pormenor dos umbigos em
formato diverso. Pois entendia ele, homem de saberes e de sabores,
que a utilidade de um saleiro e de um pimenteiro está intimamente
ligada com a necessidade infindável de liberdade e de descoberta
humanas. Assim sendo, exigira-se a si mesmo permitir que o uso do seu
conteúdo tivesse apenas a ver com o cuidado posto nas mãos de quem
os manuseasse e não com o habitual e desigual número de orifícios
das tampas.
Imaginava-os presentes sobre as mesas das famílias
por esse mundo fora, placidamente entregues ao seu papel de
complemento de uma refeição, como seguro contra receitas menos
ousadas, ou ainda como ornamento puro e simples. E previa que em
qualquer desses casos, dada a semelhança da sua compleição, eles
seriam objecto da curiosidade de todos os que, ao pegar-lhes
avidamente e não reparando no pormenor das letras, se interrogariam
sobre qual era qual. E então, aquilo que não passara de um mero
gesto, poderia tornar-se em algo mais complexo, correndo-se o risco
de o sucesso de uma refeição ou de uma festa vir a ser arruinado.
Pois bastava que alguma mão usasse de menor destreza para que o
conteúdo do saleiro caísse desamparado sobre um bife que se queria
apenas um pouco mais saboroso. Ou então, em caso extremo, que o pó
preto escondido sob o disfarce da túnica branca enevoasse os
arredores do prato em questão e atrapalhasse o nariz do comensal
mais tímido às voltas com as regras da etiqueta. Fosse como fosse,
estaria salvaguardada a liberdade, condimento essencial a ter em
conta também nas comidas.
– Pronto,
vão agora à vossa vida. A minha tarefa acaba aqui –
disse o artesão com um sorriso nos lábios, embrulhando
cuidadosamente o saleiro e o pimenteiro num fino papel vermelho
salpicado de sonhos.
M
(2005)
7 comentários:
Que texto extraordinário, a partir de uns objectos tão simples! És muito talentosa na escrita!
Gostei imenso!
E os objectos em causa já são muito antigos? Gosto da simplicidade deles.
Beijinhos e bom dia!
Isabel:
O saleiro e o pimenteiro foram comprados em 2005. A balança era da minha Avó paterna e foi nela que sempre vi pesar os ingredientes necessários às recitas. Conservei ambos durante anos mas a certa altura, por falta de espaço em casa, vendi a balança e os respectivos pesos. Sempre fui despojada mas com os anos pesando na balança da minha existência, guardo apenas o imprescindível e que possa ter à vista. Uma questão de defesa.
"Receitas" e não "recitas". Isso seria outra coisa, claro.
Uma boa ideia, "recitar" o que está tão esquecido: 2005!
As fotos e palavras, esse diálogo tão bonito, das coisas e das pessoas.
B
Lindas!
Quem me dera ser despojada! Sou uma acumuladora de inutilidades:(
Beijinhos:))
Não acredito que sejas acumuladora de inutilidades, Isabel. O que guardas é porque te dizem muito. Com o tempo é que vamos fazendo escolhas maiores. Talvez uma preparação para...
A união perfeita entre o texto e a fotografia!
Gostei muito da ironia subjacente ao teu texto e que envolve a simplicidade dos objectos fotografados, indo para além deles.
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