sexta-feira, 19 de junho de 2020

DO QUE GOSTO 7 (Ainda o tempo, perdido ou não)


Foto de S. (Tempo perdido)

A Senhora da Limpeza

A oficina do relojoeiro tem uma janela que abre sobre um pátio empedrado. É um compartimento relativamente pequeno que nos parece ainda mais reduzido por causa da quantidade de relógios que lhe ocupam o espaço. Poderei talvez dizer que é um espaço de silêncios forçados, a começar pelo do senhor Martins, que pouco fala, ou quando fala, julgo que o faz em tiquetaques. O que não é de estranhar visto que, desde horas que já nem conto, o conheço rodeado de ponteiros e minutos. Confesso que até eu, quando lá vou fazer a limpeza da sala – tem que ser sempre na presença dele, para não haver perigo de eu lhe desarrumar aquela confusão –, dou comigo a pensar que ele é um relógio qualquer no meio daquilo tudo: Do-na Fran-cis-qui-nha, cui-da-do com o pa-no, o-lhe e-sses pa-ra-fu-si-nhos, se al-gum de-sa-pa-re-ce É assim que ele fala, vagarosamente. Lembra-me o relógio de pêndulo da minha casa: é tão lento, tão lento, que às vezes penso que o pêndulo adormece na viagem para leste e não volta ao lado do oeste.
O senhor Martins vive rodeado de relógios pendurados nas paredes da oficina, ainda que de esguelha em escápulas retorcidas pela ferrugem (ou de contrariedade, vá-se lá saber). Costuma sentar-se à mesa de trabalho, com um olho de vidro esquisito encaixado no olho direito, u-ma lu-pa, explicou-me ele um dia. Mas pelos vistos não é suficiente para lhe mostrar o que ele quer ver em pormenor, porque volta e meia aproxima dela os relógios desventrados. Relógios de pulso onde o tempo se cansou de si mesmo, mostradores com tampa de vidro escancarada, parafusos minúsculos estrategicamente colocados à parte para memória futura, ferramentas de vários tamanhos e feitios… Tudo isto espalhado em cima da mesa, cada relógio com seu problema e sua etiqueta e um número escrito à mão, pa-ra não con-fun-dir pul-sos, diz ele. Ao que eu acrescento: – E tiquetaques, senhor Martins… E rimo-nos, uns segundos apenas, ambos por causa do tempo a não perder. Só que eu às vezes estou-me nas tintas para o tempo e demoro-me a olhar lá para fora…

M

(2005)

2 comentários:

Justine disse...

Que grande texto, M.! em sintonia com a qualidade da fotografia. Que par, amiga…
Um beijo

Anónimo disse...

Lembro-me bem desta fotografia! e primeiro que a percebesse... Só lendo. Agora sorrindo e recordando, todos os pontos cardeais e a graça descrita nos tiquetaques da alma.
Ver o mecanismo de um relógio por dentro é assim, como nós, rodas pequeninas girando ao contrário, fiozinhos enroscados e a arte de saber "do Tempo". Ou não.
E como diria Proust "Em Busca do Tempo Perdido"
B