Foto de S. (O homem que via passar os comboios)
As Viagens do
Pensamento
É curioso como o mundo
entra dentro de nós através dos nossos sentidos, viaja pelos
atalhos íntimos de cada um e depois regressa ao seu lugar primeiro
com os contornos de quem o sentiu.
Acontecia assim com
este homem, pescador numa praia deserta, baloiçando os dias sobre as
águas. Vivia da pesca. Sentado no seu barco a motor horas a fio,
preparava as redes, desembaraçava-as, lançava-as ao mar, esperava.
E esperava olhando aquela gigantesca locomotiva avançando pelo
oceano adentro.
Sempre tinha gostado de
comboios, afeiçoara-se-lhes no livro da escola, sonhava com eles,
atravessava cidades e campos em viagens imaginadas por si. Dentro do
seu pensamento havia carris sobre os quais deslizavam carruagens
apinhadas de famílias, de pessoas a caminho do emprego, de raparigas
que lhe acenavam sorrisos à distância, de gente em férias, de
malas, de cestos, de sacos de correio com cartas apaixonadas…
Cartas que ele sabia de cor, cada frase repetida devagar, palavra a
palavra, saboreada até à sílaba, até se derreter na sua boca como
um bombom. Homens, mulheres, crianças que embarcavam e desembarcavam
com ele em estações a abarrotar de movimento, relógios a marcar o
tempo, apeadeiros desertos que estremeciam com o apito do comboio
assinalando a sua passagem desenfreada.
Foi-se
o último comboio do dia,
disse o pescador com um sorriso ao canto da boca. Agora
tens que me dar boleia.
E, depois de levantar as redes carregadas de peixe e de o despejar
nos caixotes no fundo do barco, pôs o motor do Viajante
do Mar
a trabalhar e largou em direcção a casa.
M
(2005)
2 comentários:
Toda esta beleza de sentimento, olhar, palavra.
Considero importante que se recorde e reveja, tão belos são estes acordes em distância. Como um violino.
B
um encanto! E eu, que conheço o Gronho há 60 anos, que tantas vezes o subi a pé até mesmo à plataforma superior, de onde observávamos as Berlengas ao pôr-do-sol, nunca me passou pela cabeça compará-lo com uma locomotiva!
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