quarta-feira, 25 de novembro de 2020

COISAS DE OUTROS TEMPOS

Foto de S. (Fragilidades)

Volare oh oh…

Fragilidades, é isso. Há-as de todos os géneros, existem dentro de nós, na nossa cabeça, na nossa   vontade, na nossa alma, nos nossos gestos, nos nossos objectos. E sem que saibamos como, mantêm-se inteiras, não partem. Apesar dos tombos, apesar dos lugares, apesar dos anos, apesar da fragilidade. Também elas aí estão ainda, tão delicadas, agora noutro espaço, as válvulas arrancadas ao móvel-rádio que pertenceu ao tio Armel. Que foi uma das suas paixões, que lhe preencheu parte dos dias, que certamente o consolou. Consumiram-se pouco a pouco dentro desse móvel antigo, mas permanecem de pé e olham-nos com a sua dignidade de passado tocando ao de leve a nossa vida. 

Volare oh oh…, como cantava Domenico Modugno.

 

A timidez deste lado da sala de baile, envolta em vestidos vaporosos, sentada nas cadeiras encostadas à parede. As mãos atrapalhadas, sem encontrarem lugar, penduradas, escondidas, entrelaçadas. Do outro lado chegam passos afoitos, a decisão encurtando a distância, atravessando-a de viés, a pergunta na ponta de um sorriso acanhado: − Quer dançar? Volare, ouve-se ainda no rádio. Sim, é mais isso. Esvoaçar num sonho qualquer ao som da música. Até quando? Até que a voz se cale e voltemos a sentar-nos, um rio de silêncio empurrando as palavras para as margens. Um instante apenas. Até que Domenico Modugno nos venha buscar de novo e nos pegue na mão. E nos enlace. Vaporosas. Volare oh oh, e cantare oh oh oh oh. Nel blu dipinto di blu, felice di stare lassu…

M

(2006)

3 comentários:

bettips disse...

É isso (o que digo noutro lado): a vida que davam às coisas simples, às coisas aparentemente antigas e mortas. De olhar e palavras.
Dançamos ainda hoje, de memória, quando sabíamos tantas línguas só de as ouvir!
Uma pincelado de azul.
Bjs

Justine disse...

Ai, tanta nostalgia! Aí que beleza de texto, fazendo-me recuar quase 60 anos da minha vida!

Mónica disse...

Hmmmm que romântico cantare oh oh oh