quarta-feira, 24 de fevereiro de 2021

A CAIXA DO JOGO DE DAMAS

A CAIXA DO JOGO DE DAMAS

Esta quase centenária caixa de Jogo de Damas chegou às minhas mãos em estado decrépito digno de compaixão e por aqui ficou posta em sossego na prateleira de uma estante, não fosse ela desconjuntar-se completamente ao menor toque do mais bem intencionado curioso. Não faço ideia da sua linhagem ou de quem passou serões usando estratégias e tácticas para se tornar o vencedor da noite, nem sei a razão por detrás daquele estado de abandono físico. Até as suas peças me faziam dó, coitadas, permanentemente enclausuradas, impedidas de verem fosse o que fosse fora de portas. Posso conjecturar sobre motivos vários, claro, como o natural desgaste dos anos, por exemplo, ou o descontrolo de alguém com dificuldades em se aceitar perdedor, ao ponto de atirar tudo pelo ar. Conheço explosões dessas desencadeadas por pequenos jogadores do sexo masculino em aprendizagens de afirmação. Pelo que vou observando, parece-me que as raparigas são geralmente mais pacientes em competições desta natureza e aproveitam as estratégias e tácticas usadas no jogo para as aplicarem com sucesso na sua vida.

Mas voltando à caixa… Sempre gostei dela, apesar do estado degradado, o fecho delicado um pouco lasso, e pensei que valia a pena tentar dar-lhe uma oportunidade de se tornar mais apresentável.

O tempo foi correndo e eu com o pensamento na caixa. Encontrei então por mero acaso um velhote habilidoso que lhe restituiu a antiga dignidade, da qual nunca tive dúvidas seria merecedora.

M

(Fotos de M)

terça-feira, 23 de fevereiro de 2021

A ESPÁTULA - UMA HISTÓRIA AOS QUADRADINHOS

Há tanto tempo que eu desejava fazer crepes, mas onde encontrar a receita, procurei nos vários livros de cozinha que tenho, até num oferecido pelo meu Pai à minha Mãe, a dedicatória dele na primeira página, a letra de alguém que conhecemos atravessa os nossos olhos e entra dentro de nós de forma comovente, é um pouco da pessoa, algo da sua identidade que não se perdeu, traços marcados no caminho, o dela e o nosso.

Saiu a balança da prateleira, cada ingrediente pesado com cuidado, misturado com a batedeira em rodopios culinários, a colher de pau a ajudar a remover dos lados do recipiente os pedaços rebeldes, entende-se a rebeldia, foi necessária uma espátula para ajudar a resolver o conflito entre farinha, leite e ovos. Lembrei-me desta, com nome supostamente revelador de boa disposição e disponibilidade para qualquer tarefa: Jo!e. Sim, tem um ponto de exclamação no lugar de um i, eu sei, mas considerei-o como um reforço do seu estado de alma, afinal parece que me enganei, aparentemente não gostou da ideia de ser metida ao barulho, de se sujar em assuntos conflituosos, invocou que não era suposto ser envolvida em misturas desta natureza, tinha-me sido oferecida para tarefa mais delicada, por alguma razão viera acompanhada de uma pequena frigideira, graciosa no seu tamanho de cozinhados para bonecas. E ela sempre com aquela expressão de contrariedade, prometi-lhe que no fim lhe daria um papel de relevo quando me ajudasse a retirar os crepes, um a um, da frigideira. Nem assim, permaneceu com aquela expressão de poucos amigos mas não teve outro remédio senão obedecer-me. 


Comidos os crepes, ficou a espátula de molho, mas não achou graça à piscina improvisada, compreendo, a água não estava lá muito límpida.

Pelos vistos a estadia na piscina não a ajudou a recuperar completamente a aparência. Deitou-se desanimada.

Esfreguei-a com carinho. Estás a ver, disse-lhe para a animar: pareces uma sereia. Mas ela não gostou da ideia, nem sequer se virou ligeiramente para se ver nos talheres por perto. Se tivesse braços, diria que os teria cruzado, gesto muito comum dos meninos quando amuam.

Paciência, pensei eu, há quem não goste de se imaginar de outro modo, nem sereias nem fadas, nada os faz sair dos seus hábitos.

M

(Fotos de M)