terça-feira, 23 de fevereiro de 2021

A ESPÁTULA - UMA HISTÓRIA AOS QUADRADINHOS

Há tanto tempo que eu desejava fazer crepes, mas onde encontrar a receita, procurei nos vários livros de cozinha que tenho, até num oferecido pelo meu Pai à minha Mãe, a dedicatória dele na primeira página, a letra de alguém que conhecemos atravessa os nossos olhos e entra dentro de nós de forma comovente, é um pouco da pessoa, algo da sua identidade que não se perdeu, traços marcados no caminho, o dela e o nosso.

Saiu a balança da prateleira, cada ingrediente pesado com cuidado, misturado com a batedeira em rodopios culinários, a colher de pau a ajudar a remover dos lados do recipiente os pedaços rebeldes, entende-se a rebeldia, foi necessária uma espátula para ajudar a resolver o conflito entre farinha, leite e ovos. Lembrei-me desta, com nome supostamente revelador de boa disposição e disponibilidade para qualquer tarefa: Jo!e. Sim, tem um ponto de exclamação no lugar de um i, eu sei, mas considerei-o como um reforço do seu estado de alma, afinal parece que me enganei, aparentemente não gostou da ideia de ser metida ao barulho, de se sujar em assuntos conflituosos, invocou que não era suposto ser envolvida em misturas desta natureza, tinha-me sido oferecida para tarefa mais delicada, por alguma razão viera acompanhada de uma pequena frigideira, graciosa no seu tamanho de cozinhados para bonecas. E ela sempre com aquela expressão de contrariedade, prometi-lhe que no fim lhe daria um papel de relevo quando me ajudasse a retirar os crepes, um a um, da frigideira. Nem assim, permaneceu com aquela expressão de poucos amigos mas não teve outro remédio senão obedecer-me. 


Comidos os crepes, ficou a espátula de molho, mas não achou graça à piscina improvisada, compreendo, a água não estava lá muito límpida.

Pelos vistos a estadia na piscina não a ajudou a recuperar completamente a aparência. Deitou-se desanimada.

Esfreguei-a com carinho. Estás a ver, disse-lhe para a animar: pareces uma sereia. Mas ela não gostou da ideia, nem sequer se virou ligeiramente para se ver nos talheres por perto. Se tivesse braços, diria que os teria cruzado, gesto muito comum dos meninos quando amuam.

Paciência, pensei eu, há quem não goste de se imaginar de outro modo, nem sereias nem fadas, nada os faz sair dos seus hábitos.

M

(Fotos de M)

1 comentário:

Anónimo disse...

La joie de vivre
des petites choses, même dans la cuisine!
B