quinta-feira, 7 de abril de 2022

Infância


Foto de M

Infância, um pássaro que se deseja livre para voar.

Onde está a infância que me pertenceu ou me foi permitido viver? Tão longe na névoa do Tempo. Indistinta por vezes e, no entanto, marcantes os episódios lembrados. E eu? Quem fui? Que entendi eu de mim, dos adultos e dos meus pares? Como me sentiram eles? Através das suas próprias infâncias? Que guardei ou recusei?

Tão distante e tão próximo o colégio onde ao lanche tinha de beber café com leite quente que me provocava vómitos e por isso era a última a sair do refeitório enorme onde me perdia de mim. E a camioneta do colégio, sentadas em silêncio as meninas de bata preta até chegar a casa? Tudo isso dormita nessa névoa estranha de um lugar onde nunca me senti acolhida. De duas amigas resta a imagem desfocada dos seus rostos e das festas dos nossos aniversários. Eu saí para o liceu aos 10 anos, depois do exame da 4ª classe, sem pena, julgo, elas continuaram lá, perdemos o rasto umas das outras. Quatro anos desperdiçados? Pouco aproveitados? Sei apenas que nunca escolhi um colégio de freiras para os meus filhos. 

Existia uma outra parte dos meus dias vivida em família, eu e o meu irmão as únicas crianças entre adultos. Ri, chorei, zanguei-me. Calei medos provocados por histórias aterradoras contadas por uma empregada. Brinquei, corri, saltei à corda, andei de trotinete na Tapada da Ajuda. Soprei bolas de sabão à janela da sala de jantar de Lisboa, subiam leves, rodopiando cores até ao céu. Ouvi histórias enroscada na chaise longue da Tia Chanel, o meu irmão e eu, um de cada lado. Deitada na cama em dias de sarampo, li o livro da Colecção Azul A Princesinha, de Frances Hodgson Burnett, oferecido pela minha Mãe, e comovi-me com a história. Sentei-me no colo do meu Pai. Vi o silêncio da minha Avó Júlia apoiado no braço da cadeira antiga estofada de veludo verde junto da janela do seu quarto. Tantas vezes calada, ela que também me falava dos pais, dos irmãos, da sua infância e juventude até ao dia do casamento com o meu Avô aos 19 anos.

Vidas dentro de vidas. E também fora delas.

M

2 comentários:

Justine disse...

Que memória fabulosa, M., eu lembro-me de uma coisa ou outra, dispersa, mas o teu "rol" é rico, colorido e cheio de personagens!
Quanto ao colégio de freiras, da minha experiência guardo melhores recordações que tu...

Anónimo disse...

Estava à espera de encontrar aqui esta memória branca, perdida nos hojes e lembrando os ontens.
Lemos e vemos. Como espreitando o que já não se usa: slides coloridos. Vivos. Muito belo.
B