sábado, 18 de março de 2023

Fausto

     Vendia a minha alma por um colo! Há muito que a ideia se lhe enroscara no corpo de tanto a pensar. Vivia dia e noite na imobilidade de uma prateleira de vidro frio pregada na parede daquela loja onde tudo o que pudesse ter tido vida morrera de tédio. Entusiasmara-se a princípio com o lugar que lhe fora destinado e amiúde se revia na superfície brilhante que lhe servia de espelho, mas o tempo embaciara-lhe o desejo. Entregara-se tristemente ao desencanto cerrando os olhos, para só lhes abrir uma fresta sempre que a campainha da porta tilintava curiosidades que varriam o espaço apertado em que morava e que depressa dele se cansavam. Todavia, até desse abrir e fechar de olhos desistira Fausto e quase os colara de vez, cobrindo-os com uma das patas e forçando a cabeça de encontro ao pó que lhe servia de cama.

     Olha a gata! pareceu-lhe ouvir na lonjura enevoada dos seus pensamentos.

     A gata?! Rodou a cabeça 90 graus e espreitou: fixavam-no atentamente dois olhos verdes poisados no rosto de uma menina de cabelos negros atados por uma fita de seda vermelha.

     - É muito bonito, não é, Ágata? Gostavas de o levar contigo? – ouviu perguntar.

     Ah, agora percebo! Pois não podia ser uma gata, que está lá fora no vidro da montra um papel a proibir a entrada de animais!

     Foi então que Fausto se sentiu a voar, como se tivesse também ele asas de pássaro. E tremia. Não sabia se por causa do medo se pela esperança naquele voo que o arrastava do vidro frio e inerte para a concha quente e macia das mãos de uma menina.

M

1 comentário:

Anónimo disse...

E lá está a criatividade a subir
como um pássaro um gato pensador
uma ágata-pedra atirada!
Um gesto de menina.
B