segunda-feira, 27 de março de 2023

Pensando em água e não só

O Aquário

     Lá vem ela com o ar adormecido de todas as manhãs! E eu que espere, às voltas neste espaço exíguo. Hoje vestiu o roupão do avesso – ih! ih! – parece-me bem que acordou num daqueles dias em que a cabeça ficou noutro sítio. Agora anda à procura dos bolsos, nem repara que eles estão virados para dentro. Claro, é um gesto tão habitual nela… Então, voltas para trás? Pois, julgas que deixaste a chave no quarto. Estás enganada, com certeza que a tens dentro do bolso, juntamente com o lenço de assoar e o frasco das gotas para o nariz. E o que tu não percebeste ainda é que vestiste o roupão do avesso. Não me admiro nada. Aposto… Com quem se vivo aqui sozinho neste mundo silencioso? Lá transparente é ele, este meu mundo, porque ela é muito cuidadosa, mas de que me serve? Aposto na mesma, aposto que a culpa foi tua, Mila. Estás até às tantas da noite a ver telenovelas e depois, quando te vais deitar, o sono é tão grande que só pensas em dormir. Desconfio que atiras o roupão para cima da cadeira aos pés da cama e nem te preocupas se ele fica direito ou torto. Bem te oiço a falar sozinha no teu quarto: Não me importo que caias, daí não passas, porque o chão não tem buracos!  Aí vem ela outra vez, oiço-lhe os chinelos a arrastar pelo chão.

    A cara enorme, os cabelos desgrenhados de uma noite mal dormida tapavam agora a pouca luz que incidia sobre a minha casa aquática. Ui, que arrepio! E rio-me. Vivo dentro de água e falo de arrepios! Bem sei que a conheço há muitos meses, mas que querem, ainda me assusto quando vejo esta carantonha que me espreita.

     Dou mais uma volta dentro deste meu universo sem ruído e escondo-me atrás de uma alga. É ali o meu posto de observação desde sempre. Toda esta cerimónia do meu pequeno almoço segue diariamente os mesmos rituais. Conheço-lhes perfeitamente a sequência. Depois de Mila me ter tirado por instantes aquele raiozinho de sol que me aquece através do vidro do aquário já sei que vai abrir as portadas interiores da janela. Deixa-as sempre entreabertas. E não deve haver vizinha nenhuma nas redondezas que não saiba que ela nunca as fecha completamente porque gosta de poder espreitar o luar quando se levanta em noites de insónia.

     Bem, parece que é desta que me traz o pequeno almoço. Acabou de escancarar a porta do armário que muito range de velhice toda ela. (Felizmente encontrou a chave!) Mas isto ainda demora o seu tempo. Primeiro vai remexer as caixas dos medicamentos que estão guardados na primeira prateleira. É uma desorganizada! Pois se sabe que precisa de tomar o laxante com o café da manhã – “de cevada”, diz ela – por que razão não o põe à vista? E depois desata a falar-me das doenças que a afligem, como se eu a ouvisse! (Por acaso até oiço, ela é que não faz ideia nenhuma que a oiço). E mostra-me as caixas dos comprimidos: Olha, não posso esquecer-me de tomar este ao almoço, por causa da minha memória, que anda pelas ruas da amargura. Não percebo, então porquê que a deixa ir para as tais ruas, se lhe faz tanta falta? É este inferno todas as manhãs! Eu, que não preciso de medicamentos, sou obrigado a ouvir aquela lista de nomes esquisitíssimos que mesmo um farmacêutico tem dificuldade em decorar! Finalmente oiço o barulho da caixinha com a minha comida. Techeteche… techeteche… techeteche…  

     Olá Vermelhinho, cá estou eu! E a carantonha de novo ali, sufocante, os olhos enormes em busca de mim. Mila bate agora levemente no vidro do aquário. É um gesto habitual nela, para me obrigar a sair do meu esconderijo. Faço-lhe a vontade e rodopio por entre as algas coloridas da minha casa até ao momento em que no lugar da carantonha aparece apenas um sorriso enorme. Um pouco distorcido, claro, mas é um sorriso. Atravesso então a transparência desta água simultaneamente protetora e possessiva em busca do meu palco flutuante e nele me entrego à minha dança de bailarino solista. Caem flocos de neve. Não os como de imediato. Espero que Mila se afaste e diga, com os olhos rasos de lágrimas: Ainda um dia hei-de ir ver a neve a cair.

M

2 comentários:

Anónimo disse...

Só hoje e por acaso "repesquei" esta tua prosa de pura diversão. Falar com as coisas, ou pô-las a falar, também pode ser uma consolação para quem está só, ou quem não ouve, ou até para quem não quer falar. Viva o peixinho pensador, Mila há-de estimá-lo!
B

Mónica disse...

Tão giro! Consegues pôr beleza e alegria na monotonia de um peixe no aquário. Gostei da cena dos bolsos virados para dentro, é mesmo assim