terça-feira, 29 de agosto de 2023

Eureka!

Foto de M

Teve graça que fosse no excerto do link que a minha amiga B. me deu recentemente a conhecer que eu encontrasse na explicação de João Cutileiro a resposta à dúvida exposta no meu texto escrito em 2001 abaixo reproduzido. As voltas que a vida dá! Neste caso, 22 anos!

(…) O repasto faz-se de melancias, romãs e marmelos - a fruta que o namorado oferecia à namorada em sinal do seu amor, muito antes do atual anel. "É por isso que ainda hoje se diz 'estar na marmelada'." Os sorrisos aparecem ainda timidamente. As quatro virtudes cardeais, prudência, fortaleza, justiça e temperança, intimidam e fazem-nos oscilar entre a tentação da carne e a salvação divina. (…)

https://expresso.pt/cultura/2021-01-05-Pelo-Alentejo-com-o-mestre.-Uma-viagem-com-Joao-Cutileiro

Fazer marmelada versus “Estar na marmelada”

Depois de ontem ter enfiado pela goela abaixo um Pazolan, na esperança de que ele me diluísse o nó cego que aí se me atravessava (a palavra “goela” está correctamente aplicada porque o tamanho dele era de tal ordem que a minha dita goela poderia assemelhar-se ao pescoço de um ganso a quem se alimenta zelosamente para fins de confecção de um paté delicioso), acordei esta manhã pelas 8 horas, com o sono posto na justa medida. Ainda como preâmbulo, chamo a atenção para o pormenor, caso ele não tenha sido notado, de eu ter empregado o vocábulo “pescoço” para um ganso, tendo-me atribuído a mim própria aquele outro que, pela classificação zoológica oficial, lhe caberia a ele. A razão dessa escolha está no facto de, por vezes, um ser humano, por tanto matutar na humanidade, chegar a atingir as feições de um animal. Isto para não se tornar desumano ou desumanizado.

Pois bem, aparentemente diluído o tal nó, ou talvez para ser mais correcta, tendo-se ele misturado algures com o pequeno almoço, deitei mãos à obra. Brinquei aos montes de roupas que com satisfação fui transportando ao longo da casa até chegar ao oceano (posso descobrir na minha máquina de lavar roupa um oceano contido, porque não?). Há espuma, ondas que vão e vêm, aquele ruído repetido, como diz a canção popular “O mar enrola na areia…”, há roupas de corpos supostamente satisfeitos em mergulhos de férias que passaram já… Só não há peixes. Mas até isso poderá resolver-se, bastará comprar um ou dois peixes, mais umas algas e estrelas do mar e misturá-las por lá (como uma nova embalagem promocional de Skip pós verão: “Faça como eu, uso sempre Skip, por isso a minha roupa está sempre branquíssima. E para as crianças é sensacional, acham tanta graça aos peixes!”). O pior é que cá em casa já não há crianças… Refiz camas, pendurei roupas para que secassem ao sol dançando nos arames com a poluição, ao som dos maçaricos da obra infindável da casa ao lado, dos sons graves dos autocarros, das buzinas estridentes e insistentes dos condutores (de tal modo amam os seus carros que até com eles se confundem…); pensei no almoço, no jantar, temperei realmente o pensamento dedicado a ambos.

Mas não ficou por aqui a minha actividade doméstica. Vesti as roupagens do estilista Pantagruel mas entretanto dei comigo a dissecar a palavra: Pan + tagruel. O deus Pan nesta minha vida tão terrena?! Poderia ser, mas… Não, é demasiado feio e assustador para que possa adequar-se a esta minha preocupação que entretanto me assolou o espírito e que passarei mais adiante a compartilhar.

Peguei no resto dos marmelos que esperavam o toque das minhas mãos, virei-os e revirei-os, encontrei-lhes algumas nódoas negras (não sou só eu que as tenho, pelos vistos) e apressei-me a cortá-los, a tirar-lhes a penugem que os cobria e que os acompanhara fielmente desde a terra natal, a lavá-los e a metê-los na panela. Posto de parte o deus Pan (Apolo adequar-se-ia melhor ao objecto da minha dúvida, claro, mas por enquanto estou só a falar de comida), encostei-me ao Livro da Isalita que pertenceu à minha Mãe.

Na azáfama em que me encontrava, entre ruídos anestesiando-me os ouvidos saudosos de mar, varinhas mágicas esmagando os marmelos quentes acabados de retirar da panela de pressão contra os grãos de açúcar, veio-me à ideia a pergunta: Por que razão se diz “Estar na marmelada”? E então os rodízios do meu pensamento passaram a acompanhar o movimento ritmado e permanente do meu braço embrulhado em pano protector contra lavas escaldantes que saltavam da panela. Aparentemente, não conseguia encontrar qualquer ligação entre “fazer marmelada” e “estar na marmelada”. Esta última expressão pressupõe um êxtase que não me parece encontrar na confecção do doce pois, neste caso, está-se num constante terror de se ser atingido pela tal lava. Por outro lado, as mãos das cozinheiras (de nome Isalita e não só), quando em apuros destes, ficam doridas, ruborizadas, com bolhas prestes a rebentar, ásperas, o que impede qualquer pensamento poético tipo “Beijo as tuas mãos finas e brancas como seda imaculada”. Falo de poetas agora, o deus Pan não sei se teria sucesso, tê-lo-ia mais Apolo.

Portanto, recapitulando, Pan só terá sucesso na confecção de marmelada, e apenas se lhe pusermos a fina capa tagruel, último modelo da saison Outono – Inverno 2001. Então onde encontrar a ligação entre as duas frases? O verbo Estar tem vários significados, como se sabe, e também não me parece que algum deles se aplique da melhor maneira à expressão “Estar na marmelada”. Será porque ela escalda? Talvez.

Tenho ainda a acrescentar que, durante a apreciação deste meu problema surgido inesperadamente no meio de uma actividade doméstica vulgar, me lembrei da minha amiga Fernanda. Sei que tem o espírito aberto para questionar assuntos que não interessam ou passam mesmo despercebidos à maioria das pessoas, por isso lhe deixo em mãos esta minha dúvida, caso ela a considere objeto de reflexão.

M

(2001)

segunda-feira, 28 de agosto de 2023

Fim de tarde festivo

 

Fotos de M

domingo, 13 de agosto de 2023

Marés Vivas

 Foto de M

Marés Vivas

 

Tenho uma varanda encostada à bruma que me não deixa hoje ver o mar. Mas oiço-os ao longe, para lá desta cortina que nos separa. Oiço-os nas frases que me chegam incompletas, nas palavras entrecortadas pelo vento que vagueia em torvelinho, nos risos que se escapam das algas lançadas sobre a praia. Devem estar vestidos, as camisolas cobrindo-lhes os braços de meninos, as sandálias em monte, encostadas ao paredão onde as águas arremessaram o mau génio da insónia da noite. Pés pequeninos correm sobre o areal, tropeçam na urgência de brincar: Ai, magoei‑me nesta pedra! Estava escondida… Param logo a seguir, esses pés que brincam: Ui! Dói! Foi apenas um arranhão de concha estilhaçada. A bola rola, atirada de longe com força, retarda-se sobre pequenos montículos, entre piruetas e gargalhadas de crianças. Embate depois contra uma pequena rocha, atordoada, toda ela embrulhada em grãos de areia brilhantes e húmidos, e aí se detém. Cuidado, meninos, venham mais para cima! É Mercedes quem grita cautelas, do fundo da sua cadeira de lona desdobrável. Sentou-se longe das ondas enfurecidas, junto dos suportes do toldo nu que hoje se despiu e enrolou cores e sombra. O seu olhar passeia entre as crianças que brincam perto de si e o mar revolto e demora-se por instantes nas algas abandonadas sobre a areia molhada onde a espuma escorre leve. Imagina naperons feitos com rendas de linha fina cobrindo o areal, para logo desaparecerem pouco a pouco, como se lhe tivessem fugido das mãos, inacabados. Sorri. É assim a sua vida, uma renda que faz e desfaz em cada instante, sem que compreenda por que razão deixa cair tanta malha. Ah, se calhar a culpa é dos seus olhos, pois que nunca os abriga por muito tempo entre os dedos. Vês, murmura ela dentro de um sorriso escondido, cá estão eles, irrequietos, pousados agora naquela cabecinha de tranças delicadas que faz desenhos sobre a areia grossa. A menina segura nas mãos um pequeno pau caído não se sabe donde, talvez tenha chegado à praia equilibrado no dorso de uma onda. Está absorta no peixe que desenhou, deve estar a pensar como vai preencher‑lhe o corpo com escamas. Sim, o peixe tem que ter escamas e barbatanas. Para ser mais real e poder ser capaz de nadar. Levantou-se de um salto. Pegou no balde vermelho. Imagino-a com os olhos presos no chão, uma concha que brilha aqui, outra ali; baixa-se, apanha-as, guarda-as dentro do pequeno balde…. Anda devagar, pé ante pé, como se tivesse receio de pisar algum tesouro escondido. Atravessa-se-lhe entre as pernas a bola que rebola, para logo desaparecer no meio das gargalhadas dos rapazes, afogueados agora. Despem as camisolas, que o sol espreita morno. Cuidado com as minhas conchas! grita ela, a expressão do rosto envolvida em contrariedade. Pára, volta para trás, senta-se de pernas cruzadas junto do seu peixe e coloca dentro dele, encaixadas umas nas outras, como se fossem escamas, as conchas que apanhou. Depois, debruça-se sobre ele e diz-lhe baixinho: − Podes ir embora. Aproveita aquela onda grande que vem lá.

   M