Foto de M
Marés Vivas
Tenho uma varanda encostada à bruma que me não deixa hoje ver o mar. Mas oiço-os ao longe, para lá desta cortina que nos separa. Oiço-os nas frases que me chegam incompletas, nas palavras entrecortadas pelo vento que vagueia em torvelinho, nos risos que se escapam das algas lançadas sobre a praia. Devem estar vestidos, as camisolas cobrindo-lhes os braços de meninos, as sandálias em monte, encostadas ao paredão onde as águas arremessaram o mau génio da insónia da noite. Pés pequeninos correm sobre o areal, tropeçam na urgência de brincar: Ai, magoei‑me nesta pedra! Estava escondida… Param logo a seguir, esses pés que brincam: Ui! Dói! Foi apenas um arranhão de concha estilhaçada. A bola rola, atirada de longe com força, retarda-se sobre pequenos montículos, entre piruetas e gargalhadas de crianças. Embate depois contra uma pequena rocha, atordoada, toda ela embrulhada em grãos de areia brilhantes e húmidos, e aí se detém. Cuidado, meninos, venham mais para cima! É Mercedes quem grita cautelas, do fundo da sua cadeira de lona desdobrável. Sentou-se longe das ondas enfurecidas, junto dos suportes do toldo nu que hoje se despiu e enrolou cores e sombra. O seu olhar passeia entre as crianças que brincam perto de si e o mar revolto e demora-se por instantes nas algas abandonadas sobre a areia molhada onde a espuma escorre leve. Imagina naperons feitos com rendas de linha fina cobrindo o areal, para logo desaparecerem pouco a pouco, como se lhe tivessem fugido das mãos, inacabados. Sorri. É assim a sua vida, uma renda que faz e desfaz em cada instante, sem que compreenda por que razão deixa cair tanta malha. Ah, se calhar a culpa é dos seus olhos, pois que nunca os abriga por muito tempo entre os dedos. Vês, murmura ela dentro de um sorriso escondido, cá estão eles, irrequietos, pousados agora naquela cabecinha de tranças delicadas que faz desenhos sobre a areia grossa. A menina segura nas mãos um pequeno pau caído não se sabe donde, talvez tenha chegado à praia equilibrado no dorso de uma onda. Está absorta no peixe que desenhou, deve estar a pensar como vai preencher‑lhe o corpo com escamas. Sim, o peixe tem que ter escamas e barbatanas. Para ser mais real e poder ser capaz de nadar. Levantou-se de um salto. Pegou no balde vermelho. Imagino-a com os olhos presos no chão, uma concha que brilha aqui, outra ali; baixa-se, apanha-as, guarda-as dentro do pequeno balde…. Anda devagar, pé ante pé, como se tivesse receio de pisar algum tesouro escondido. Atravessa-se-lhe entre as pernas a bola que rebola, para logo desaparecer no meio das gargalhadas dos rapazes, afogueados agora. Despem as camisolas, que o sol espreita morno. Cuidado com as minhas conchas! grita ela, a expressão do rosto envolvida em contrariedade. Pára, volta para trás, senta-se de pernas cruzadas junto do seu peixe e coloca dentro dele, encaixadas umas nas outras, como se fossem escamas, as conchas que apanhou. Depois, debruça-se sobre ele e diz-lhe baixinho: − Podes ir embora. Aproveita aquela onda grande que vem lá.
M
3 comentários:
Imaginação à solta e uma bela reportagem introspectiva. Basta um recanto e as palavras fluem como as ondas. Sempre iguais, sempre diferentes. De conchas e malhas, crianças e pés de areia.
Bj
B
Texto vivo, imaginativo, rico, fluido...e tantas outras coisas que me encantaram!
A fotografia está de acordo.
"o toldo nu que hoje se despiu e enrolou cores e sombra" que beleza M. que beleza!
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