terça-feira, 24 de outubro de 2023

Tão longe

Foto de S

Foi há 18 anos. Queríamos muito visitar a Polónia. Em julho de 2005, viajámos de avião até Varsóvia para nos juntarmos a uma excursão de 32 espanhóis organizada por uma agência de viagens espanhola, com guia espanhol, e percorrermos parte do país em autocarro, conduzido por um polaco que era um verdadeiro senhor.
No último dia da viagem regressou cada um à sua cidade: Lisboa, Barcelona, Madrid, Valência, Bilbao... A horas diferentes, a começar de manhã cedo. O nosso voo foi o mais tardio, pelo meio da tarde. Ainda deu tempo para voltarmos a passear por Varsóvia, por ruas onde não tínhamos estado. Encontrámos uma loja de ferragens ao estilo das nossas, com escadotes à porta, objectos pendurados semelhantes aos nossos. Foi estranho pressentirmos ali alguém que podia ser o senhor Silva ou o senhor António a que estamos habituados. Tão longe!
E eis-nos transportados ao aeroporto pela avenida das tílias em flor. Encontrámos uma fila longa no controle de bagagem do check-in: uma hora em pé, arrastando vagarosamente a mala de cabina pelo chão. À minha frente, uma senhora jovem com uma criança de 7 anos falava em inglês com ela. A certa altura dirigiu-se-me numa língua que não entendi: uns segundos de confusão mental para mim. Pois se ainda há pouco a tinha ouvido falar inglês!... Disse-lhe que não a compreendia. Pediu-me então em inglês se lhe guardava o lugar, que precisava de ir com a filha à casa de banho. Quando voltaram, a menina abraçou-me a cintura e disse-me: "Thank you". Com um sorriso de criança. E continuou a comer a "junk food", como a mãe se lhe referiu com um sorriso de impotência de adulto. Não tinha querido almoçar e agora comia uma espécie de pipocas que se espalharam depois no chão. A senhora era polaca, vivia em Nova Iorque e voltara a Varsóvia ao fim de 20 anos. Para ver a família. Desencontrara-se com uma prima que vivia em Londres e não sabia que ela vinha. O marido, de origem italiana, não falava polaco, nem a pequenita. Preferia viver na América. "I love you, mummy", disse a filha, no meio das pipocas, com a cabecinha encostada ao corpo da mãe. "I love you too, Marcela". Afectos expressos na demora de uma fila de espera, a urgência de o exprimir. E que memórias levava com ela ao fim de tantos anos de ausência? E que memórias terão ficado na família, nos pais, em mais alguém amigo? "Agora é melhor aqui na Polónia", respondeu-me quando lhe perguntei o que tinha achado da sua terra. "Antes havia filas para a comida. Passava-se pior". Também por essas razões se vai e se abandona tudo. Nem que seja temporariamente. Valem-nos a alguns as filas de espera. Para amortecer a partida: "I love you, mummy". "I love you too, Marcela".
Depois foi o desconforto do "túnel da curiosidade" do arco de olho invisível por cima das nossas cabeças, dos cintos tirados das calças, das chaves retiradas dos bolsos, da apalpação de luva branca, contornando os nossos corpos, entrando dentro das malas de mão suspeitas, objectos deitados fora, pois que quem vê caras não vê fanatismos e tem que se precaver contra eles. Todo este cerimonial inevitável cansa, desgasta, e atrasa aviões. Foi o que nos aconteceu a nós. O voo de Varsóvia saiu para lá da hora prevista. Tivemos por companhia o pôr do sol, uma tira alaranjada a nosso lado lá no alto, como se fossemos pássaros. E o tempo apertava e Frankfurt demorava a chegar. E o nosso voo para Lisboa? Mandámos um cartão ao piloto explicando a situação e pedindo para sermos os primeiros a sair, mal o avião aterrasse. Mais vinte minutos imprevistos sobrevoando o aeroporto, à espera de autorização para aterrar. E nós olhando o relógio. Fomos os primeiros a sair. Depois foi correr de um terminal ao outro, no lado oposto. Parecia um aeroporto de malucos: toda a gente a correr de mala às costas, nas passadeiras, nas escadas, afogueados. Certamente todos com o mesmo problema que nós. Valeu-nos o voo para Lisboa estar atrasado meia hora. Chegámos cansados, mas felizes.

M

terça-feira, 17 de outubro de 2023

Ai quem me dera

 
 
 
Fotos de M

Lembro junho de 2010 numa viagem magnífica aos Açores e a travessia de barco do cais da Madalena, na ilha do Pico, para a Horta, no Faial. Comigo, em pensamento, o inesquecível livro Mau Tempo no Canal de Vitorino Nemésio e a sua Margarida, inspiradora da letra e música de Aníbal Raposo cantadas por Helena em Tema para Margarida na apresentação ao vivo do CD em Ponta Delgada, a que tinha assistido uns dias antes.

 «Margarida acordou às oito horas. Era quase Dezembro; amanhecia tarde. Atirou com a dobra do lençol e, enfiando o robe de chambre, procurou com o pé as chinelinhas no chão. Chegou à janela. A quinta parecia lavrada por arados fantásticos, de relha à mostra. Os cedros estavam descabeçados, dois ou três partidos, mostrando o cerne vermelho com as fibras inchadas de água. Aqui e além, nos currais, nadavam ramos de faia em verdadeiros charcos. Havia lances de passeios deitados abaixo, com brechas profundas e torrões da bagacina esboroada, marcando o sentido do enxurro. E, para lá do «calhau» coberto das mantas da cheia, via-se o Canal ainda amargo, com o Pico negro e cónico ao fundo. O cano do Funchal fumava a meio da Doca, entre um rebocador, a draga e a canhoeira, e Margarida reparou que lhe faltava qualquer coisa: metade do mastro de vante levada pelo ciclone.»

In Mau Tempo no Canal, 1º parágrafo do capítulo O Despertar, Vitorino Nemésio, Publicações Dom Quixote, Lda., Maio de 2002.

E a quem apetecer ouvir o CD, aqui fica o link:

https://www.youtube.com/playlist?app=desktop&list=OLAK5uy_lNDadJJL2Pq8fzdg1xd2vf1_IQjqdzrc0

Tema para Margarida, faixa 5 do CD Helena Cant’ Autores Açorianos. Música e letra: Aníbal Raposo. Arranjo e piano: Carlos Frazão. Contrabaixo: Mike Ross. Violinos: Manuel Rocha. Bateria e Percussões: Joaquim Teles (Quiné). Voz: Helena Oliveira.

Tema para Margarida

Ai quem me dera partir

Na canoa da esperança

E ir ancorar noutras praias

Noutros varadouros

 

Ai quem me dera voltar

A gozar dos tesouros

Da felicidade que eu tinha

Quando era criança

 

Ai quem me dera ser garça

E voar no canal

Só entre o Pico e o Faial

Me quedar dividida

 

Ai quem me dera mão firme

No leme da vida

Ai este amor que me mirra

Me mata e faz mal

 

Ai quem me dera de novo

As certezas e os medos

Ai quem me dera ter credos

E não ser indiferente

 

Ai o amor passa ao largo

Da vida da gente…

Ai já o tempo se escoa

Como areia entre os dedos…

M