terça-feira, 17 de outubro de 2023

Ai quem me dera

 
 
 
Fotos de M

Lembro junho de 2010 numa viagem magnífica aos Açores e a travessia de barco do cais da Madalena, na ilha do Pico, para a Horta, no Faial. Comigo, em pensamento, o inesquecível livro Mau Tempo no Canal de Vitorino Nemésio e a sua Margarida, inspiradora da letra e música de Aníbal Raposo cantadas por Helena em Tema para Margarida na apresentação ao vivo do CD em Ponta Delgada, a que tinha assistido uns dias antes.

 «Margarida acordou às oito horas. Era quase Dezembro; amanhecia tarde. Atirou com a dobra do lençol e, enfiando o robe de chambre, procurou com o pé as chinelinhas no chão. Chegou à janela. A quinta parecia lavrada por arados fantásticos, de relha à mostra. Os cedros estavam descabeçados, dois ou três partidos, mostrando o cerne vermelho com as fibras inchadas de água. Aqui e além, nos currais, nadavam ramos de faia em verdadeiros charcos. Havia lances de passeios deitados abaixo, com brechas profundas e torrões da bagacina esboroada, marcando o sentido do enxurro. E, para lá do «calhau» coberto das mantas da cheia, via-se o Canal ainda amargo, com o Pico negro e cónico ao fundo. O cano do Funchal fumava a meio da Doca, entre um rebocador, a draga e a canhoeira, e Margarida reparou que lhe faltava qualquer coisa: metade do mastro de vante levada pelo ciclone.»

In Mau Tempo no Canal, 1º parágrafo do capítulo O Despertar, Vitorino Nemésio, Publicações Dom Quixote, Lda., Maio de 2002.

E a quem apetecer ouvir o CD, aqui fica o link:

https://www.youtube.com/playlist?app=desktop&list=OLAK5uy_lNDadJJL2Pq8fzdg1xd2vf1_IQjqdzrc0

Tema para Margarida, faixa 5 do CD Helena Cant’ Autores Açorianos. Música e letra: Aníbal Raposo. Arranjo e piano: Carlos Frazão. Contrabaixo: Mike Ross. Violinos: Manuel Rocha. Bateria e Percussões: Joaquim Teles (Quiné). Voz: Helena Oliveira.

Tema para Margarida

Ai quem me dera partir

Na canoa da esperança

E ir ancorar noutras praias

Noutros varadouros

 

Ai quem me dera voltar

A gozar dos tesouros

Da felicidade que eu tinha

Quando era criança

 

Ai quem me dera ser garça

E voar no canal

Só entre o Pico e o Faial

Me quedar dividida

 

Ai quem me dera mão firme

No leme da vida

Ai este amor que me mirra

Me mata e faz mal

 

Ai quem me dera de novo

As certezas e os medos

Ai quem me dera ter credos

E não ser indiferente

 

Ai o amor passa ao largo

Da vida da gente…

Ai já o tempo se escoa

Como areia entre os dedos…

M

2 comentários:

Anónimo disse...

Límpido, o lugar da memória.
Belas referências a propósito, a menção ao escritor e à música.
Tantas vezes o pensamento é como uma pauta que se lê.
E se dá a ler.
B.

Justine disse...

Uma ligação perfeita: os barcos e os Açores! Adequadíssimo o excelente livro escolhido!