quarta-feira, 22 de janeiro de 2025

Acontecimentos desagradáveis


Foto de S

Acontecimentos desagradáveis tenho alguns na memória, sendo sempre os mesmos que me aparecem a fazer-se lembrados. Envoltos numa certa neblina, mas mesmo assim incómodos, talvez porque não consigo recordar-me de todos os detalhes. Conto um que me aterrou anos a fio, era eu criança. Havia uma empregada em casa dos meus pais que contava histórias assustadoras. Uma delas foi sobre um ladrão que tinha trepado pela parede de um prédio e entrado pela janela de um dos andares. E se me acontecesse a mim… Ora nós morávamos num terceiro andar com pé direito alto de prédio antigo e, portanto, seria impossível alguém fazer escalada e entrar em nossa casa dessa maneira. Pois, mas todos sabemos, julgo eu, que os medos tomam conta da eventual racionalidade que uma criança possa ter. Então, todos os finais dos dias, assim que a noite se aproximava, depois de me certificar, através dos vidros da janela, que não estava lá a carantonha nem as mãos do dito homem agarradas ao parapeito, fechava as portadas de madeira interiores do meu quarto e espreitava para debaixo da cama. À hora de me deitar voltava a certificar-me de que nada tinha sido mexido. Uma tormenta que durou sei lá quanto tempo. Pois é, mas eu nunca falava dos medos que tinha aos meus pais nem a mais ninguém. Sofri as consequências.

M

quarta-feira, 15 de janeiro de 2025

Ah como a compreendi!

Fotos de M

Uma pequena capela centenária. Família e amigos ali reunidos para a celebração de um baptizado. Adultos e crianças sentados nos bancos corridos de madeira escura, olhando-se uns aos outros, passeando a curiosidade pelas paredes e tectos de pedra à espera do padre. Ei-lo que chega! Pais e padrinhos do menino a baptizar juntam-se-lhe na mesa do altar. Felizes em redor do seu menino, participantes activos nos rituais desta iniciação cristã. Entre leituras de textos e explicações alargadas, dirigiu-se o padre a todos os presentes, esquecendo-se que as crianças (apenas elas?) têm o seu tempo de escuta e de entendimento de palavras ouvidas, porventura algumas desajustadas também ao momento e a quem se dirigia. Eu observava a menina. De início parecia compenetrada do papel a desempenhar, mas a certa altura apercebi-me nela de uma certa incapacidade para permanecer quieta. Tinha-se levantado e procurado um banco isolado, subindo-o e descendo-o várias vezes, acabando por tirar os sapatos, deixá-los no chão e sentar-se. De repente levantou-se e, em bicos dos pés descalços, acercou-se do grupo junto do altar e esticou o braço para tocar ao de leve com a sua mão pequenina na casula do padre. Não sei se queria confirmar que brilho era aquele. Suponho que sim. Era habitual nela tocar nas coisas com mãos fugidias para as ver e sentir de perto, quase um tímido tocar sem tocar. Ou seria para lhe dizer: Estou aqui e já não aguento mais ouvi-lo. Ah como a compreendi!

M

quarta-feira, 8 de janeiro de 2025

Molduras



Fotos de M & S

No meu sentir, as molduras são objectos de grande importância no tempo de vida que me coube, cabe e caberá ainda neste mundo. Não apenas pelos retratos de família e amigos nelas resguardados, mas também pelo que mais contêm de relevante e quero me seja relembrado, mostrado permanentemente, associado a episódios que desejo permaneçam vivos na minha memória. Gosto de as colocar em lugar de destaque, enquadrando-as entre outros objectos para que, precisamente pelas características diferentes de cada um, ou comuns entre eles, se tornem apetecíveis ao meu olhar. Pelo menos comigo assim funciona.

A moldura em primeiro plano na fotografia mostra um bilhete graficamente original do espectáculo de marionetas a que assisti com o meu marido em Praga, em 1993: Rusalka, ópera do compositor checo Antonín Dvorák. Foi inesquecível por causa de uma série de detalhes associados ao caso. A sala que o exibia era fora do centro da cidade, apanhámos um transporte público, creio que um eléctrico, que nos deixou num bairro que imediatamente me lembrou os prédios do nosso chamado “bairro azul” em Lisboa, perto do Museu Gulbenkian. Como era cedo, almoçámos num pequeno restaurante tipo familiar no rés do chão de um dos prédios, directamente aberto para o passeio. Mais parecia a sala de casa de um de nós, duas ou três mesas, um balcão com acesso à cozinha, nenhum comensal, apenas os donos em amena conversa de eventual almoço de família, entre avós, pais, filhos e netos. (Havia uma criança no grupo a quem os mais velhos olhavam com afecto de avós na despedida do encontro). Lá conseguimos fazermo-nos entender mutuamente (eles só falavam checo) na escolha do que poderíamos comer e então vem para a mesa uma carne assada igual à que cozinhamos em Portugal! O nosso espanto não se ficou por ali. Ao chegarmos à morada onde se realizava o teatro, a dois passos, constatámos que era num dos outros edifícios da rua, todos eles antigos, de uma mesma época, e num dos andares! Imaginem-se a subir e chegarem a um patamar onde a entrada para a sala de espectáculos era como se abríssemos a porta das nossas casas! O acesso era feito diretamente para uma sala grande com um palco ao fundo e cadeiras iguais às dos teatros fixadas ao chão. À hora marcada, abriram-se as cortinas escuras do palco mostrando o cenário iluminado, onde se foram desenrolando as cenas da estória com mini personagens habilmente manejadas por mãos e fios invisíveis acompanhadas pela música de Antonín Dvorák. Só no fim, espreitando sorridente por cima do cenário, o marionetista invisível se deu a conhecer ao público. Tenho ainda na memória a minha surpresa com a visão de desconformidade entre ele, ser humano de tamanho normal, verdadeiro, e a pequena dimensão do cenário construído. Com as suas mãos mágicas tinha-nos levado a imaginar pessoas reais nas marionetas e afinal pareciam ter trocado de lugar.

M

quarta-feira, 1 de janeiro de 2025

Viagens e ancoradouros

 



Fotos de M

Entre as viagens que tive a sorte de fazer, escolho a última: um passeio ao Alentejo em maio de 2023, três dias em boa companhia, apreciando aquela paisagem belíssima quase sem limites. Mostro-vos parte do Ancoradouro da Amieira. Tão bonita a quietude do ambiente, a convivência entre tons, luz e sombras, céu, água e terra. O ancoradouro e a corda que o prende à margem é uma imagem cheia de significado para mim. Lembram-me os lugares onde fui pousando nas diversas viagens que fiz e aos quais fiquei ligada por várias razões. Abarcam parte do meu mundo: o que viaja e me leva consigo e o que me acompanha no regresso a casa e se recolhe no meu Ancoradouro da Memória.

M