sábado, 22 de novembro de 2008

Texto com que participei no 8º Jogo das 12 Palavras no blog Eremitério

Foto de M

À GUISA DE CARTA


Prezado Eremita,

Confesso que, ao receber a lista de palavras para o 8º Jogo das 12 Palavras, dado o pouco uso de algumas na linguagem corrente dos nossos dias, pensei se estaria a viver noutra época. Vieram-me então à cabeça vários livros de escritores de séculos idos, e de tal maneira a ideia se impôs que cheguei ao ponto de me imaginar vestida com a indumentária desses tempos. Pelo sim pelo não, procurei um espelho que me mostrasse de alto a baixo e constatei que o meu aspecto era o de uma mulher do ano 2008 da era cristã. Afinal aquela fantasia nada mais tinha sido do que uma reacção primária relacionada com a minha preocupação em responder de forma adequada a este desafio de escrever textos com doze palavras obrigatórias sugeridas por outros. Tarefa difícil, pelo menos para mim. Como resolver o problema? Tomei por isso a ousadia de o pôr ao corrente do meu embaraço perante o repto que nos é feito esta semana.
Numa época em que até se comunica através de palavras mutiladas pelos dedos de mãos apressadas em manejar mensagens por telemóveis, e em que vocábulos antigos foram completamente esquecidos, suponho que o meu amigo compreenderá a minha dificuldade em escrever um texto ajustado à proposta. Que não nego poderá vir a ser muito enriquecedor para quem nos ler e assim, consoante a idade, recordará tempos de linguagem requintada, ou, no caso dos mais jovens, os levará, pelo menos e se curiosos, a manusear o dicionário. Confesso, contudo, que tenho algumas dúvidas, e imagino certos obstáculos, quanto à aplicação dessas palavras na vida actual e trivial de todos nós. Dir-me-á que uma língua se constrói na sua utilização. Claro que sim, mas também por isso mesmo, dou-lhe um exemplo que me parece elucidativo. Imagine o que seria encontrar-me eu num autocarro e, já farta de ouvir uma daquelas discussões alimentadas por inflamadas difamações que por vezes animam essas viagens, tentar apaziguar os contendores e dizer‑lhes: Deixem-se dessa aleivosia, meus senhores! De certo olhariam para mim estupefactos e diriam: Olha esta! O que é que você está a insinuar? Penso que, no aceso da disputa verbal, e do gesto esboçado, não seria avisado da minha parte explicar-lhes que é de mau tom urdir calúnias e o melhor seria remeter-me à minha insignificância, não resistindo, no entanto, a aconselhar-lhes: Não percam tempo com ninharias, que ele é uma preciosidade a resguardar nas nossas vidas. (Julgo que, pelo menos, ninharias lhes seria familiar, pois que delas temos o mundo cheio…) Depois sairia do autocarro, deixando atrás de mim, estampado nos rostos dos passageiros, o silêncio da comiseração (não sei se por mim se pelos outros) e do cansaço dos dias em busca do pão que alimenta os estômagos famintos.
Bem, mas prosseguindo na explanação das minhas dificuldades em corresponder ao seu pedido, e porque me parece a propósito, lembro-lhe que esta vida urbana é completamente diferente da que goza no seu eremitério. Aqui, a efervescência devora-nos e poucas horas sobram para o misticismo e para a reflexão filosófica sobre o que quer que seja, como por exemplo o conceito de infinitude. Aqui desejam-se soluções imediatas, aplicadas ao dia-a-dia, como uma espécie de unguento eficaz que se procura para a travessia das rotinas e das dores do corpo que transbordam para a pele ou se embebem na alma. O senhor é que tem o privilégio de poder sentar-se pela manhã à beira do seu pensamento e enriquecer os seus dias com o olhar demorado no sincelo dos beirais dos telhados. Na cidade nem de beirais damos conta, que raramente os há. Temos elevadores em prédios altos e, quando viramos a cabeça para cima à procura de qualquer coisa que nos afaste da realidade que nos consome, vemos o céu à distância. O que apesar de tudo não é mau, porque o céu pode ser um telhado.
Espero, prezado amigo, que não interprete mal a minha carta e que a tome apenas como um desabafo. Sendo o senhor um eremita habituado à reflexão, presumo saberá avaliar melhor do que ninguém as apreensões de uma citadina do século 21.
Um abraço
M

8º Jogo das 12 Palavras no Eremitério

(As 12 palavras de uso obrigatório eram: aleivosia, comiseração, eremitério, infinitude, mãos, misticismo, pão, preciosidade, silêncio, sincelo, unguento, urdir.)

10 comentários:

Justine disse...

M, adorei a tua carta e todos os recados inclusos, de ironia subtil e elegante:))
(A Benó,num dos textos,também escolheu a ironia e tb gostei. O meu texto saiu com uma gralha no último parágrafo, mas espero que dê para perceber.Também tentei a ironia...)
Verás fotos muito em breve...:))

mena maya disse...

Deliciosa esta tua missiva com expressões adoráveis:
Numa época em que até se comunica através de palavras mutiladas pelos dedos de mãos apressadas em manejar mensagens por telemóveis - o privilégio de poder sentar-se pela manhã à beira do seu pensamento!

Um beijinho

Limpa o Pó disse...

Boa semana!
Bj

Anónimo disse...

Dos bons textos ali postados, o teu.
Gosta-se da forma como alguns escrevem.
Já te acompanho há algum tempo, e, ainda bem!
Ainda que seja diferente, trouxe-me aquele sabor bom que fica quando se lêem as crónicas do A.Lobo Antunes. É dos textos que dá gozo ler para alguém que está ao nosso lado, ouvir, e, gera tanta conversa boa!
Meu Beijo, M, e, uma boa semana. Imaginámos-te no autocarro, passageiros... e, não pudemos deixar de sorrir :-)
Acredita que deveríamos ter ficado umas paragens atrás, mas, prosseguimos no autocarro.
Uma delícia a tua carta!

vida de vidro disse...

A isto chamo eu dar a volta ao texto. Muito bem! Adoro o teu registo irónico. **

Eli disse...

Parabéns pela participação nesta iniciativa!

:)

Manuel Veiga disse...

"urdiste" muito bem ...
ou não foras tu tecedeira da palavra imaginativa...

fosse eu "ermita" e tua carta me reconciliaria com o Mundo... rss

excelente.
beijos

Licínia Quitério disse...

Ironia e elegância de estilo são ingredientes conhecidos dos teus textos.
Adorei. Sincelamente ;)

Anónimo disse...

M. ito é que é estilo... Mt bem, adorei a forma que arranjaste para dar a volta ao texto. Parabéns!
Uma boa semana. Parece-me q finalmente consigo mexer no meu blog. Vamos ver até qd!
Um beijo
mj

Mónica disse...

parabéns! espero q tenhas ganho o 1º prémio :DDDDD

fico contente com a tua assunção de cidadã do século 21