Talvez as asas do vento ou algum pássaro generoso se tenham apiedado da semente perdida nas ruas da cidade e a tenham pousado ali. Para que crescesse longe do olhar ausente dos homens de passos pesados. M
Sete Cidades e o Caminho das Ruas. O dos seus habitantes como membros de uma comunidade que presumo activa, e o de cada um na sua singularidade. Também o meu caminho ali, porque diferente e ao mesmo tempo reconhecível nos passos que vou dando nas ruas da minha vida. Pouco vi da intimidade da povoação, do que observei guardo apenas pinceladas de impressões, que os relógios são implacáveis com as horas marcadas por outros dentro dos nossos dias. Chamou-me a atenção a álea imponente que acolhe a fé dos que se dirigem a pé para a igreja de São Nicolau. Contrasta com as veredas vizinhas onde flores e pássaros fazem ninho em pedras de ruínas abandonadas ao relento. Nos quintais abrigados do vento cresciam hortas debruadas de hortênsias e um sol tímido acariciava a roupa pousada sobre a erva. Vais corar, ai vais, vais…, murmuraria a mulher que não encontrei e que adivinho divertida em segredos do coração. Ao fundo do caminho de chão vermelho a lagoa, agora tão próxima, e aquele banco onde gostava de me sentar a sorver toda a serenidade das cores em redor. M
há mãos assim, que de castas, como as tuas, prolongam o tempo que há dentro da cor, e trazem o lume e o brilho da sombra com que as horas desenham o despojo da luz.
Emanuel Jorge Botelho
21 Haiku com Asas, Urbano, e Cabras, (Segundo Livro, Urbano, de Emanuel Jorge Botelho – Urbano), Galeria 111 Poemas de Emanuel Jorge Botelho Ilustrações de João Urbano Melo Resendes Ambos naturais da ilha de São Miguel
«Na minha frente entreabre-se um abismo que nos atira para fora da vida, para regiões inesperadas de sonho. A convulsão, a brutalidade e o fogo levantaram até ao céu grandes paredes vulcânicas, dispondo no fundo do caos alguns campinhos meigos e dois lagos, um inteiramente verde, outro inteiramente azul, separados por um fio de terra e quietos, adormecidos, cismáticos. As forças desencadeadas chegaram a este resultado: - Um pouco de azul, um pouco de verde, ternura e idílio…»
Raul Brandão, As Ilhas Desconhecidas – Notas e paisagens, Edição Artes e Letras, Açores, Setembro de 2009
«…O carácter da paisagem é delicado e oculto. Embora a gente veja o campanário e as casas minúsculas no fundo da enorme cratera, duvida, e chega a supor que a vara dum mágico fez parar o tempo, e aquilo se conserva encantado entre montes desmedidos e brutos que o guardam prisioneiro. O tempo passa, os homens passam; só ali tudo está suspenso, na atitude fixa no momento do prodígio. Na solidão mágica não se ouve cantar um pássaro, a água não bole, as flores não bolem. Tudo se mostra na amplidão da cratera aberta para o céu e num grande silêncio estarrecido…»
Raul Brandão, As Ilhas Desconhecidas – Notas e paisagens, Edição Artes e Letras, Açores, Setembro de 2009
Of course, SATA, I wouldn´t dare to walk outside this area… Tenho bem a noção dos meus limites humanos, por isso nem o entusiasmo com que me instalei na barriga deste pássaro enorme ao encontro de cinco ilhas magníficas fundeadas no Atlântico me levaria à tentação de antecipar a aterragem. Nunca foi desejo meu descer aos trambolhões entre azuis e algodão doce com a ideia de pôr os pés no chão antes da hora prevista, que tudo tem o seu tempo. Certo ou incerto, claro, todos nós o sabemos já de experiência feita, que essa particularidade é parte integrante da condição da vida. E com uma agravante, que pode ser também uma questão de fé: encontraria eu algum anjo de asas brancas disposto a amparar-me na descida e a pousar-me suavemente em solo firme? Supostamente firme, ou assim o desejamos, que a História por aquelas paragens bem tem provado o contrário. É profundo o azul deste mar de baleias e golfinhos, láctea a espuma instável das ondas sobre as quais baloiçam barcos e cagarros ávidos de peixe. E a terra ali tão perto, em convivência espantosa de fertilidades e securas pardacentas de anos. Belíssima a presença das pedras negras na brancura das casas e nos muros que dividem campos de verde húmido. E as flores, tão harmoniosas em colorações várias, a debruar caminhos na vastidão do silêncio. Obedientes as vacas, o olhar ruminante e pensativo, pesando-lhes o leite na hora do passo lento para a ordenha. Discreto, quase tímido, o cântico dos pássaros à beira das lagoas abraçadas por árvores seculares que a bruma toca, diáfana e misteriosa. Quem sabe não será toda esta exuberância que encontrei nos Açores uma espécie de presente oferecido, compensação generosa pelos acessos de mau génio, tantas vezes imprevisíveis, que levam as suas ilhas a cuspir o fogo e a lava que queimam a existência dos seus habitantes. M
Talvez seja na desproporção do que sinto que me encontro. Na luz que atravessa as sombras do indizível, na dispersão da cor que é vínculo, no diálogo das formas embebendo o silêncio. M