sexta-feira, 10 de julho de 2020

DO QUE GOSTO 28


Foto de S. (Intimidades II)

No Lugar dos Outros

Julgo que, de um modo geral, todas as pessoas gostam de almofadas. Não me refiro propriamente às almofadas de natureza mais íntima, como as que se encaixam nas cabeceiras das nossas camas com o fim de suster os sonhos ou os pesadelos de cada um.
(Excluo as insónias, porque essas não se acomodam nas almofadas, preferem viajar a desoras pelas várias divisões da casa arrastando com elas a impaciência das suas vítimas.)
O que, neste momento, me interessa em particular é discorrer sobre algo que os dois modelos fotografados ali em cima, e a que não sou indiferente, me sugiram. Arrisco chamar-lhes modelos porque sinto nestas almofadas postura de gente, ao que, suponho, o autor da fotografia também não terá sido alheio. Tanto pelo título que lhe deu como pelos requintes de luz, próprios dos retratos, em que as envolveu.
Pois como dizia, estou em crer que a maior parte de nós aprecia almofadas, esses corpos de formatos, consistências e matizes vários que repousam nos sofás e no chão de algumas das nossas casas. As razões de tal hábito serão várias, presumo. Nuns casos, será apenas uma questão estética, ou seja, por exemplo, dar cor a um espaço baço e tristonho; noutros terá a ver com a solução encontrada para remediar os incómodos resultantes de uma má compra. Como se sabe, não é tarefa fácil escolher um sofá. Claro que podemos sentar-nos na loja e apreciar o conforto em exposição, mas o olhar do vendedor, ainda que as suas palavras exprimam o contrário (Faça favor, esteja à sua vontade…), aconselha-nos a não adormecer ali. E então, porque não é dado tempo suficiente ao nosso corpo para que ele avalie bem a situação de estar sentado num lugar que desconhece, e como é próprio dos seres humanos apaixonarem-se pelo que é belo (ou não belo, também), deixamo-nos seduzir pela aparência, pela macieza do tecido, pelas linhas da moda… Enfim, por tudo o que naquele instante nos prende. E assim, trazemos por vezes connosco um sofá que, não muito depois, vimos a constatar ser incómodo, provocar-nos dores nas costas, ou, porque demasiado fundo, nos deixa de pernas esticadas no ar, como as crianças quando não chegam com os pés ao chão. É aqui que entram as tais almofadas que se colocam nos ditos sofás para, de certo modo, preencher um espaço que, por razões supostamente ergonómicas, se pretende menos vazio e de maior aconchego. Para o bem e para o mal, como diz o povo: para uns será uma felicidade, para outros, um infortúnio. Basta estarmos atentos ao que se passa à nossa volta.
Começo pelos mais felizes, aqueles que, embora não tendo problemas de centímetros nas pernas, ao sentarem-se, de imediato retiram a almofada detrás de si e a poisam no regaço, ou a abraçam como se ela fosse gente. Pelo tamanho da almofada, e pelo sorriso que lhes vejo, penso que se imaginam a acariciar um bebé. Outros sentirão a falta de um abraço, ou quererão proteger o coração, ou guardar o que têm dentro dele, ou sufocá-lo, quem sabe.
Falo agora dos desventurados. Nalguns, depois de se sentarem prazenteiros, e decorridos os minutos de acomodação previsíveis, começamos por notar uma espécie de esgar invadindo os seus rostos. Percebemos que há qualquer incómodo. Será a conversa que não lhes interessa? A ideia atravessa as nossas mentes e por lá fica, à espera de confirmação. Entretanto, reparamos no braço daquele ou daquela que nos parecem contrariados: nesse preciso momento, esboça ele um gesto discreto por detrás das costas do corpo a que está ligado. Como quem coça uma pequena comichão indesejada (coitado, ele está aflito, talvez uma alergia, pensamos). Mas afinal o tal braço que até aí esboçava um gesto discreto perde a vergonha e zás, num puxão rápido, atira para o lugar do lado a almofada que amparava o desconforto de quem ali está sentado. O pior é quando o tal lugar contíguo está ocupado. Que fazer? Os mais afoitos lançarão de vez a almofada para o chão; os outros a quem o acanhamento embaraça de certo modo os seus actos limitar-se-ão a colocarem-na junto dos pés. Discretamente, como quem não quer a coisa, ou melhor dizendo, como quem não quer a almofada. Mas deixemo-los resolver o problema como melhor lhes aprouver.
E quem me diz que tudo o que aqui contei não passa de fantasias minhas e que a realidade é simplesmente esta: as almofadas têm a mania de se sentar no lugar dos outros. O que, temos que confessar, traz problemas de natureza íntima e não só.
M

(2006)

1 comentário:

Anónimo disse...

O que confesso, sempre que me deparo com estes olhares, é a mesma admiração inicial. E volto a pensar em "melodia".
B