Foto de S. (Intimidades II)
No
Lugar dos Outros
Julgo
que, de um modo geral, todas as pessoas gostam de almofadas. Não me
refiro propriamente às almofadas de natureza mais íntima, como as
que se encaixam nas cabeceiras das nossas camas com o fim de suster
os sonhos ou os pesadelos de cada um.
(Excluo
as insónias, porque essas não se acomodam nas almofadas, preferem
viajar a desoras pelas várias divisões da casa arrastando com elas
a impaciência das suas vítimas.)
O
que, neste momento, me interessa em particular é discorrer sobre
algo que os dois modelos fotografados ali em cima, e a que não sou
indiferente, me sugiram. Arrisco chamar-lhes modelos porque sinto
nestas almofadas postura de gente, ao que, suponho, o autor da
fotografia também não terá sido alheio. Tanto pelo título que lhe
deu como pelos requintes de luz, próprios dos retratos, em que as
envolveu.
Pois
como dizia, estou em crer que a maior parte de nós aprecia
almofadas, esses corpos de formatos, consistências e matizes vários
que repousam nos sofás e no chão de algumas das nossas casas. As
razões de tal hábito serão várias, presumo. Nuns casos, será
apenas uma questão estética, ou seja, por exemplo, dar cor a um
espaço baço e tristonho; noutros terá a ver com a solução
encontrada para remediar os incómodos resultantes de uma má compra.
Como se sabe, não é tarefa fácil escolher um sofá. Claro que
podemos sentar-nos na loja e apreciar o conforto em exposição, mas
o olhar do vendedor, ainda que as suas palavras exprimam o contrário
(Faça
favor, esteja à sua vontade…),
aconselha-nos a não adormecer ali. E então, porque não é dado
tempo suficiente ao nosso corpo para que ele avalie bem a situação
de estar sentado num lugar que desconhece, e como é próprio dos
seres humanos apaixonarem-se pelo que é belo (ou não belo, também),
deixamo-nos seduzir pela aparência, pela macieza do tecido, pelas
linhas da moda… Enfim, por tudo o que naquele instante nos prende.
E assim, trazemos por vezes connosco um sofá que, não muito depois,
vimos a constatar ser incómodo, provocar-nos dores nas costas, ou,
porque demasiado fundo, nos deixa de pernas esticadas no ar, como as
crianças quando não chegam com os pés ao chão. É aqui que entram
as tais almofadas que se colocam nos ditos sofás para, de certo
modo, preencher um espaço que, por razões supostamente ergonómicas,
se pretende menos vazio e de maior aconchego. Para o bem e para o
mal, como diz o povo: para uns será uma felicidade, para outros, um
infortúnio. Basta estarmos atentos ao que se passa à nossa volta.
Começo
pelos mais felizes, aqueles que, embora não tendo problemas de
centímetros nas pernas, ao sentarem-se, de imediato retiram a
almofada detrás de si e a poisam no regaço, ou a abraçam como se
ela fosse gente. Pelo tamanho da almofada, e pelo sorriso que lhes
vejo, penso que se imaginam a acariciar um bebé. Outros sentirão a
falta de um abraço, ou quererão proteger o coração, ou guardar o
que têm dentro dele, ou sufocá-lo, quem sabe.
Falo
agora dos desventurados. Nalguns, depois de se sentarem prazenteiros,
e decorridos os minutos de acomodação previsíveis, começamos por
notar uma espécie de esgar invadindo os seus rostos. Percebemos que
há qualquer incómodo. Será a conversa que não lhes interessa? A
ideia atravessa as nossas mentes e por lá fica, à espera de
confirmação. Entretanto, reparamos no braço daquele ou daquela que
nos parecem contrariados: nesse preciso momento, esboça ele um gesto
discreto por detrás das costas do corpo a que está ligado. Como
quem coça uma pequena comichão indesejada (coitado, ele está
aflito, talvez uma alergia, pensamos). Mas afinal o tal braço que
até aí esboçava um gesto discreto perde a vergonha e zás, num
puxão rápido, atira para o lugar do lado a almofada que amparava o
desconforto de quem ali está sentado. O pior é quando o tal lugar
contíguo está ocupado. Que fazer? Os mais afoitos lançarão de vez
a almofada para o chão; os outros a quem o acanhamento embaraça de
certo modo os seus actos limitar-se-ão a colocarem-na junto dos pés.
Discretamente, como quem não quer a coisa, ou melhor dizendo, como
quem não quer a almofada. Mas deixemo-los resolver o problema como
melhor lhes aprouver.
E
quem me diz que tudo o que aqui contei não passa de fantasias minhas
e que a realidade é simplesmente esta: as almofadas têm a mania de
se sentar no lugar dos outros. O que, temos que confessar, traz
problemas de natureza íntima e não só.
M
(2006)
1 comentário:
O que confesso, sempre que me deparo com estes olhares, é a mesma admiração inicial. E volto a pensar em "melodia".
B
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