segunda-feira, 13 de julho de 2020

DO QUE GOSTO 33


Foto de S. (O Mundo a seus pés)

Poças de Água

Quando se é criança, julgo que uma poça de água na maré vazia contém dentro o nosso mundo. Um pedaço de mar à medida do nosso tamanho de então, onde enfiamos os pés, onde nos sentamos, onde mergulhamos o corpo inteiro, onde saboreamos o encanto salgado de um momento.
Em tempos que já lá vão, andaria eu por volta dos sete anos, tive um boneco de celulóide, pequeno, pouco maior do que a minha mão de adulta. Lembro-me que no dia em que me foi oferecido estava doente e aborrecida, condição habitual sempre que a febre nos visita e nos agarra à cama sem nos pedir licença. No caso de uma criança, será talvez ainda pior, porque a imobiliza debaixo de cobertores, deixando a descoberto apenas a rabugice, as faltas de apetite e as dietas, e sem que ela compreenda a razão de tamanho castigo.
As mulheres da minha família andavam por perto do meu mal-estar, espreitando-o no meio dos seus afazeres e espalhando instantes de ternura dentro do meu quarto. Revezavam-se: ora se chegava a avó Júlia com um sorriso silencioso e uma carícia poisada ao de leve na minha testa febril, ora se sentava a tia Chanel em cima da minha cama com as brincadeiras que sempre lhe conheci. A minha mãe teria saído, qualquer compra imprescindível a fazer nas imediações a teria afastado de casa, suponho que me terão dito. Não demoraria. Quando voltou, trazia-me de presente um boneco de celulóide, sem roupa, mas lembro-me que me afeiçoei a ele de imediato. Mais tarde tricotou-lhe um fato de banho em lã, minúsculo. Era azul claro, com um peitilho e alças finíssimas que apertavam atrás com dois botões brancos pequeninos, pequeninos. Um desejo expresso para que o meu bebé pudesse ir comigo para a praia e tomar banho nas poças de água que o mar deixava para mim na areia.
Ah, como foi bom ter aquele mundo aos meus pés!
M

(2006)

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