Foto de S. (Hora de ponta)
Conversas
Loucas
(ou
Conversas de Louças?)
−
Estava-se mesmo a ver
que isto ia acontecer. É no que dá esta história das promoções.
−
Dá em quê?
−
Amontoam-nos.
−
Não percebo. E o que é
que uma coisa tem a ver com a outra?
−
Não percebes?! Quando
há promoções, o espaço encolhe, porque querem meter o Rossio na
Betesga.
−
O quê? Não entendo
nada do que dizes.
−
Nunca ouviste esta
expressão? Quero eu dizer que nos puseram nesta prateleira sem se
preocuparem se ela era suficientemente espaçosa para conter tanto
prato e tanta chávena. Mal podemos mexer-nos, e com sérios riscos
para a nossa integridade física! Como se não tivéssemos direito a
ser bem tratados!
−
Pois, tens razão, o
espaço é realmente apertado, mas sabes, eu até acho graça às
promoções. Quando a gerência lança estas campanhas aparece mais
gente na loja, há mais movimento. E, além disso, as pessoas dão-nos
atenção, não ficam só a olhar para nós e a cochichar: Será
que este prato dá bem com a toalha azul?
Pega daqui, pega dali… Acho
que sim, o branco não choca.
É de
aproveitar o
preço…
E não se decidem, viram-nos de cabeça para baixo, à procura de
defeitos, eu sei lá que mais… Às vezes até tremo com medo que me
deixem cair. Zás!, lá se ia o meu rico corpinho. O branco não
choca! Com franqueza! Preconceitos.
−
Gostas de chocar, tu.
Na verdade, às vezes é o que apetece. Mas sabes, apesar da
pasmaceira de alguns dias, a mim não me aborrece nada estar na loja
muito tempo. Agrada-me imaginar como será o sabor das comidas de que
as pessoas tanto falam quando aí vêm. Oiço uma palavra aqui, outra
ali, e assim vou entendendo o mundo lá de fora.
−
Pois é, tens razão.
As conversas que ouvimos ajudam-nos a compreender como se vive
noutros sítios. E até mesmo a perceber para que servimos… Muitas
vezes não sabemos, não é? Vem um designer
com uma ideia nova, chega outro e dá opinião contrária, que
devemos ter esta forma e não aquela, e acabamos com um aspecto
esquisito que nos confunde a nós e as pessoas… Ainda noutro dia
apareceu cá um miúdo muito tagarela que não parava de fazer
perguntas. Agarrou-me de repente − os pratos à minha volta até
estremeceram − e mostrou-me à senhora que vinha com ele. E repetia
uma frase qualquer que soava assim: pizza,
pizza,
mãe.
Assustei-me, pensei que ele me ia pisar. Bem sei que estou aqui em
cima e que não seria fácil para o miúdo trepar tão alto, mas com
as crianças nunca se sabe o que lhes passa pela cabeça. Depois ouvi
a senhora explicar que se cortava em fatias e que assim já cabíamos
no microondas, e então percebi que a conversa era sobre comida.
−
E aquela velhota que
pegou em mim e disse que eu tinha o tamanho ideal para ela pôr o chá
do lanche? Contou que gostava de se sentar ao fim da tarde ao pé da
janela a olhar para o nada e a beber um chá quente. A rapariga que a
acompanhava devia ser filha. Pareceu-me, tinham o mesmo sorriso e a
mesma maneira de olhar para nós. Lembras-te delas?
−
Lembro. Tu até estavas
muito contente a imaginar como devia ser bom sentir o calor do chá
no teu corpo. Ou foi a senhora que disse que ficava com as mãos a
ferver?
−
Não sei bem, se calhar
era agradável para as duas. Deve ser bom ficar para sempre nas mãos
de alguém. Aqui é que andamos num rodopio constante, levam-nos de
um lado para o outro, mais à frente, mais atrás… Há dias,
arrumaram uma jarra enorme diante de mim que me tirou completamente
as vistas da loja. Quase sufocava! E ainda por cima era pesada e
escura, um horror! Só ouvia vozes e braços a passarem por cima de
mim, sem ninguém se aperceber do perigo que eu corria.
−
Tiveste medo de ser
esborrachada?
−
Pudera! Bastava que
alguém pegasse naquele monstro e o pousasse mal na prateleira, podia
cair-me em cima e lá ficava eu esbeiçada, ou pior ainda, sem a asa.
Para além da dor, que não deve ser pequena, não me agradava nada
ficar desasada… Os clientes têm a mania de mexer em tudo, como se
nós não tivéssemos alma. Por isso é que me encantou a ideia de ir
viver na casa da tal velhota. Reparaste como ela era cuidadosa quando
nos tocava?
−
Pode ser que volte cá…
−
Hoje não me parece que
venha, está quase na altura de a loja fechar. E o gerente não faz
concessões ao relógio, está sempre a dizer que mora longe e que na
hora de ponta é um inferno para chegar a casa.
−
Ainda bem, assim
fazemos companhia um ao outro. Que tal chá com pizza?
−
Boa ideia, já temos
jantar!
M
(2006)
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