terça-feira, 14 de julho de 2020

DO QUE GOSTO 34


Foto de S. (Hora de  ponta)


Conversas Loucas
(ou Conversas de Louças?)

Estava-se mesmo a ver que isto ia acontecer. É no que dá esta história das promoções.
Dá em quê?
Amontoam-nos.
Não percebo. E o que é que uma coisa tem a ver com a outra?
Não percebes?! Quando há promoções, o espaço encolhe, porque querem meter o Rossio na Betesga.
O quê? Não entendo nada do que dizes.
Nunca ouviste esta expressão? Quero eu dizer que nos puseram nesta prateleira sem se preocuparem se ela era suficientemente espaçosa para conter tanto prato e tanta chávena. Mal podemos mexer-nos, e com sérios riscos para a nossa integridade física! Como se não tivéssemos direito a ser bem tratados!
Pois, tens razão, o espaço é realmente apertado, mas sabes, eu até acho graça às promoções. Quando a gerência lança estas campanhas aparece mais gente na loja, há mais movimento. E, além disso, as pessoas dão-nos atenção, não ficam só a olhar para nós e a cochichar: Será que este prato dá bem com a toalha azul? Pega daqui, pega dali… Acho que sim, o branco não choca. É de aproveitar o preço… E não se decidem, viram-nos de cabeça para baixo, à procura de defeitos, eu sei lá que mais… Às vezes até tremo com medo que me deixem cair. Zás!, lá se ia o meu rico corpinho. O branco não choca! Com franqueza! Preconceitos.
Gostas de chocar, tu. Na verdade, às vezes é o que apetece. Mas sabes, apesar da pasmaceira de alguns dias, a mim não me aborrece nada estar na loja muito tempo. Agrada-me imaginar como será o sabor das comidas de que as pessoas tanto falam quando aí vêm. Oiço uma palavra aqui, outra ali, e assim vou entendendo o mundo lá de fora.
Pois é, tens razão. As conversas que ouvimos ajudam-nos a compreender como se vive noutros sítios. E até mesmo a perceber para que servimos… Muitas vezes não sabemos, não é? Vem um designer com uma ideia nova, chega outro e dá opinião contrária, que devemos ter esta forma e não aquela, e acabamos com um aspecto esquisito que nos confunde a nós e as pessoas… Ainda noutro dia apareceu cá um miúdo muito tagarela que não parava de fazer perguntas. Agarrou-me de repente − os pratos à minha volta até estremeceram − e mostrou-me à senhora que vinha com ele. E repetia uma frase qualquer que soava assim: pizza, pizza, mãe. Assustei-me, pensei que ele me ia pisar. Bem sei que estou aqui em cima e que não seria fácil para o miúdo trepar tão alto, mas com as crianças nunca se sabe o que lhes passa pela cabeça. Depois ouvi a senhora explicar que se cortava em fatias e que assim já cabíamos no microondas, e então percebi que a conversa era sobre comida.
E aquela velhota que pegou em mim e disse que eu tinha o tamanho ideal para ela pôr o chá do lanche? Contou que gostava de se sentar ao fim da tarde ao pé da janela a olhar para o nada e a beber um chá quente. A rapariga que a acompanhava devia ser filha. Pareceu-me, tinham o mesmo sorriso e a mesma maneira de olhar para nós. Lembras-te delas?
Lembro. Tu até estavas muito contente a imaginar como devia ser bom sentir o calor do chá no teu corpo. Ou foi a senhora que disse que ficava com as mãos a ferver?
Não sei bem, se calhar era agradável para as duas. Deve ser bom ficar para sempre nas mãos de alguém. Aqui é que andamos num rodopio constante, levam-nos de um lado para o outro, mais à frente, mais atrás… Há dias, arrumaram uma jarra enorme diante de mim que me tirou completamente as vistas da loja. Quase sufocava! E ainda por cima era pesada e escura, um horror! Só ouvia vozes e braços a passarem por cima de mim, sem ninguém se aperceber do perigo que eu corria.
Tiveste medo de ser esborrachada?
Pudera! Bastava que alguém pegasse naquele monstro e o pousasse mal na prateleira, podia cair-me em cima e lá ficava eu esbeiçada, ou pior ainda, sem a asa. Para além da dor, que não deve ser pequena, não me agradava nada ficar desasada… Os clientes têm a mania de mexer em tudo, como se nós não tivéssemos alma. Por isso é que me encantou a ideia de ir viver na casa da tal velhota. Reparaste como ela era cuidadosa quando nos tocava?
Pode ser que volte cá…
Hoje não me parece que venha, está quase na altura de a loja fechar. E o gerente não faz concessões ao relógio, está sempre a dizer que mora longe e que na hora de ponta é um inferno para chegar a casa.
Ainda bem, assim fazemos companhia um ao outro. Que tal chá com pizza?
Boa ideia, já temos jantar!
M

(2006)

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