quarta-feira, 15 de julho de 2020

DO QUE GOSTO 35


Foto de S. (Desencontros)
 
Um Banco de Jardim

Esta coisa de um banco passar horas num jardim dá-lhe, julgo eu, carácter, pensamentos e sentir de gente. Pelo convívio com as pessoas, suponho. Vem um e senta-se, vem outro e mete conversa com o primeiro, depois chega outro e conta a sua vida, um quarto adormece as suas horas vazias… Enfim, uma socialização ao ar livre: Dá-me licença que me sente? Faça favor…, responde o sorriso de alguém. Parece-me que a conheço…, alvitra o dono do cãozito que ladra com voz esganiçada. Está calado, Farrusco! A necessidade de palavras ditas e ouvidas vai-se desobstruindo: É natural, vivo neste bairro há muitos anos. A sua cara também não me é estranha… E o que à partida poderia parecer tratar-se apenas de um banco, passa a ser considerado um colo. Leva o seu tempo, claro, humanizar a madeira rija de um banco, mas o contacto com os corpos que nele se sentam vai pouco a pouco amaciando as ripas da sua estrutura.
   A princípio, ainda no armazém, entre os seus inúmeros companheiros a sofrerem acabamentos e retoques e o cheiro incomodativo de tintas e vernizes, interrogara-se para que lugar o levariam. Tinha ouvido alguém falar de uma rua com passeios largos onde havia a intenção de colocar bancos, para que as pessoas neles pudessem descansar o seu afogadilho, e os muito velhos, à falta de melhor distracção, se sentassem a caturrar e a ver correr os apressados. Ficou apreensivo a pensar no que lhe cairia em sorte, pois que preferia outras vistas às de uma rua buliçosa, cheia de ruído e de pressas. Sempre se tinha imaginado a um canto de um jardim pacato, com árvores frondosas e flores delicadas, chilreada de pássaros e fragrâncias frescas no ar. Acalmou um pouco quando mais tarde, ainda que apertado entre vários bancos dentro da camioneta da Câmara Municipal, percebeu, pela conversa dos empregados, que o iam levar para um jardim. Aliás, aquele corvo preto pousado sobre o verde da porta da camioneta, e que num relance lhe parecera verdadeiro, tinha-lhe dado a esperança de que o seu destino fosse mesmo esse. Se também trazem um pássaro, pensou, é bom sinal… Espero que seja para o soltarem num jardim… Mas depressa se apercebeu de que o corvo não passava de um desenho e que por essa razão se mantivera imóvel durante o longo percurso pelas ruas íngremes da cidade.
Finalmente tinham acabado as curvas e contracurvas, as subidas e descidas, o trânsito lento por ruelas apertadas, os infernais solavancos sobre o empedrado de basalto, as travagens súbitas e os impropérios lançados janela fora pelo motorista! Agora o banco estava num lugar que lhe agradava. Sentia-se bem naquele canto, o céu espreitando-o lá do alto por entre as árvores debruçadas sobre o pequeno lago a seus pés, a fina renda de ferro forjado verde debruando a sua casa desprovida de paredes.
Mal teve tempo de dormitar na meia-luz da tarde. Ouviu passos esmagando ao de leve os grãos de milho espalhados sobre as pedras brancas do chão, pezinhos de criança correndo para ele, trepando por ele acima, regozijando-se com a descoberta. Avó, este banco não estava aqui ontem! Senta-te ao pé de mim. Recostou-se, acariciou-o com as suas mãos de menina, sentou nele a sua boneca. E ali permaneceu, apenas durante o tempo que as crianças são capazes de guardar, um tempo curto que salta de banco em banco e de colo em colo.
M

(2005)

1 comentário:

Mónica disse...

que beleza! és eximia a humanizar objectos, alguém disse isto no PPP a propósito do pêndulo e do candeeiro, e tem toda a razão.