Foto de S. (Flor de pedra)
A Minha Flor
Deitou-se cheio de zanga em cima do tapete da
sala. Esperneava, batia com os pés no chão em sapateado de birra, rebolava-se
de um lado para o outro como se procurasse onde se acomodar, e chorava lágrimas
enormes que lhe escorriam pela cara abaixo. Assim permaneceu durante algum
tempo, sempre com os olhos fechados, porque, penso eu, olhava para dentro do
seu desgosto de menino: Eu quero ir ao jardim ver os patos!, berrava de vez em
quando.
E enquanto todo ele se desconjuntava naquela
luta entre desgosto e zanga, deitei-me junto dele, de barriga para baixo, com a
minha cabeça poisada sobre os braços cruzados. Deixei apenas uma nesga aberta
para que os meus olhos pudessem espreitar a tempestade vizinha.
Estava eu ali de bruços, atenta ao mau humor
contíguo, e talvez porque ao rebolar-se tivesse esbarrado comigo, levantou
repentinamente a cabeça, abriu os olhos e perguntou-me:
– Que estás aqui a fazer?
– Estou deitada no jardim – respondi eu de
dentro da pequena cova dos meus braços.
– Não estás nada no jardim – resmungou ele com
ar de quem sabe do que fala. E voltou a esconder a cara dentro de si mesmo.
– Estou no meu jardim. – E acentuei a palavra
meu, para lhe mostrar que também eu sabia do que falava. – Há uma flor na
relva…
Reparei que me espreitava: – Onde?
– Ali.
Ergueu a cabeça e examinou a flor ao fundo:
– Essa flor não é verdadeira, é de pedra –
ripostou. – Aqui não há nenhum jardim, a relva tem outra cor. Já disse que
quero ir ver o lago dos patos. – E recomeçou no mesmo pranto, escorrendo-lhe de
novo do nariz aquilo que me pareceu uma mescla de desgosto e birra.
– Pois para mim esta flor tem pétalas e folhas
verdadeiras, e é mágica, porque aparece todos os dias com uma cor diferente. E
a relva fica verde sempre que eu quiser, basta pegar no meu regador e regá-la…
Ele espreitou-me de dentro dos seus soluços.
Parecia surpreendido e incrédulo.
– Estás admirado? Quando estás contente gostas
de inventar histórias, não gostas? Eu também. Chega-te mais ao pé de mim. Quero
dizer-te um segredo: – Às vezes, quando estou triste, é que tenho mais vontade
de imaginar histórias. Tu estás triste, não estás?
– Estou… Mas também estou zangado.
– A mim acontece-me o mesmo que a ti, estar
triste e zangada ao mesmo tempo… Não queres então contar-me uma história?
Ele sorriu. Pareceu-me que se teria esquecido
do que o contrariava. Levantou-se de um salto, deu uma corrida até à janela,
voltou a sentar-se junto de mim e disse-me a rir:
– Se calhar o dia hoje também está zangado. Já
viste, até parece que não quer vestir o casaco, anda tudo pelo ar… Ele tem um
casaco feito de vento. Olha!
– Por causa da birra nem encontra as mangas
para lá enfiar os braços, é? – acrescentei. Ele riu-se. – Lembra-me um menino
que eu conheço que costuma andar com o casaco às voltas por cima da cabeça…
– Ah, mas eu faço isso na brincadeira. Ele
está aborrecido. Se calhar tem febre.
– Febre?! – perguntei, admirada.
– Sim, quando o vento sopra quente é porque o
dia tem febre. Há bocado disseste que eu estava a escaldar e puseste-me o
termómetro. Disseste que era melhor vermos se eu tinha febre.
– E tinhas, lembras-te? …
Pela expressão do seu rosto, salpicado ainda
de reflexos húmidos aqui e ali, calculo que estaria a pensar.
– Era bom que o dia encontrasse depressa as
mangas do casaco. Vestia num instante o casaco feito de vento… Deve ficar muito
gordo! Depois entrava na camioneta da escola… e ia para casa dele, muito longe
daqui. Assim já podíamos ir ver os patos… Ao pé do lago o dia não tem febre, o
vento é sempre tão fresquinho…
– E se esperássemos à janela pela camioneta
da escola da tua irmã e deixássemos para amanhã a visita aos patos? Podemos
inventar mais histórias, não te parece? É tão divertido…
M
(2005)
1 comentário:
só falta a ilustração para ser um belo livro de histórias infantil, ou se calhar não falta nada, está lá tudo, muito bom!
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