quinta-feira, 23 de julho de 2020

DO QUE GOSTO 44


Foto de S. (Flor de pedra)

A Minha Flor


Deitou-se cheio de zanga em cima do tapete da sala. Esperneava, batia com os pés no chão em sapateado de birra, rebolava-se de um lado para o outro como se procurasse onde se acomodar, e chorava lágrimas enormes que lhe escorriam pela cara abaixo. Assim permaneceu durante algum tempo, sempre com os olhos fechados, porque, penso eu, olhava para dentro do seu desgosto de menino: Eu quero ir ao jardim ver os patos!, berrava de vez em quando.

E enquanto todo ele se desconjuntava naquela luta entre desgosto e zanga, deitei-me junto dele, de barriga para baixo, com a minha cabeça poisada sobre os braços cruzados. Deixei apenas uma nesga aberta para que os meus olhos pudessem espreitar a tempestade vizinha.

Estava eu ali de bruços, atenta ao mau humor contíguo, e talvez porque ao rebolar-se tivesse esbarrado comigo, levantou repentinamente a cabeça, abriu os olhos e perguntou-me:

– Que estás aqui a fazer?

– Estou deitada no jardim – respondi eu de dentro da pequena cova dos meus braços.

– Não estás nada no jardim – resmungou ele com ar de quem sabe do que fala. E voltou a esconder a cara dentro de si mesmo.

– Estou no meu jardim. – E acentuei a palavra meu, para lhe mostrar que também eu sabia do que falava. – Há uma flor na relva…

Reparei que me espreitava: – Onde?

– Ali.

Ergueu a cabeça e examinou a flor ao fundo:

– Essa flor não é verdadeira, é de pedra – ripostou. – Aqui não há nenhum jardim, a relva tem outra cor. Já disse que quero ir ver o lago dos patos. – E recomeçou no mesmo pranto, escorrendo-lhe de novo do nariz aquilo que me pareceu uma mescla de desgosto e birra.

– Pois para mim esta flor tem pétalas e folhas verdadeiras, e é mágica, porque aparece todos os dias com uma cor diferente. E a relva fica verde sempre que eu quiser, basta pegar no meu regador e regá-la…

Ele espreitou-me de dentro dos seus soluços. Parecia surpreendido e incrédulo.

– Estás admirado? Quando estás contente gostas de inventar histórias, não gostas? Eu também. Chega-te mais ao pé de mim. Quero dizer-te um segredo: – Às vezes, quando estou triste, é que tenho mais vontade de imaginar histórias. Tu estás triste, não estás?

– Estou… Mas também estou zangado.

– A mim acontece-me o mesmo que a ti, estar triste e zangada ao mesmo tempo… Não queres então contar-me uma história?

Ele sorriu. Pareceu-me que se teria esquecido do que o contrariava. Levantou-se de um salto, deu uma corrida até à janela, voltou a sentar-se junto de mim e disse-me a rir:

– Se calhar o dia hoje também está zangado. Já viste, até parece que não quer vestir o casaco, anda tudo pelo ar… Ele tem um casaco feito de vento. Olha!

– Por causa da birra nem encontra as mangas para lá enfiar os braços, é? – acrescentei. Ele riu-se. – Lembra-me um menino que eu conheço que costuma andar com o casaco às voltas por cima da cabeça…

– Ah, mas eu faço isso na brincadeira. Ele está aborrecido. Se calhar tem febre.

– Febre?! – perguntei, admirada.

– Sim, quando o vento sopra quente é porque o dia tem febre. Há bocado disseste que eu estava a escaldar e puseste-me o termómetro. Disseste que era melhor vermos se eu tinha febre.

– E tinhas, lembras-te? …

Pela expressão do seu rosto, salpicado ainda de reflexos húmidos aqui e ali, calculo que estaria a pensar.

– Era bom que o dia encontrasse depressa as mangas do casaco. Vestia num instante o casaco feito de vento… Deve ficar muito gordo! Depois entrava na camioneta da escola… e ia para casa dele, muito longe daqui. Assim já podíamos ir ver os patos… Ao pé do lago o dia não tem febre, o vento é sempre tão fresquinho…

– E se esperássemos à janela pela camioneta da escola da tua irmã e deixássemos para amanhã a visita aos patos? Podemos inventar mais histórias, não te parece? É tão divertido…

M


(2005)

1 comentário:

Mónica disse...

só falta a ilustração para ser um belo livro de histórias infantil, ou se calhar não falta nada, está lá tudo, muito bom!