sexta-feira, 24 de julho de 2020

DO QUE GOSTO 45


Foto de S. (A ilha dourada)


Partilhas



Quando ela morreu, foi com pudor e uma enorme mágoa que os herdeiros desfizeram o que restava da sua vida. Esvaziaram armários, escolheram roupas, fizeram lotes, dividiram móveis, pegaram em cada objecto como se acabassem de os receber das mãos dela e se tocassem como antigamente. Esgotados de corpo e alma, refugiaram-se ao fim do dia na penumbra da pequena sala de estar, calados, cada um com o seu silêncio. Foi então que o mais novo abriu maquinalmente a gaveta onde ela guardava os desenhos que em criança lhe ofereciam. Conservava a mesma argola dourada onde gostava de enfiar os dedos pequeninos sempre que ela lhe pegava ao colo e se sentava na cadeira junto da mesa. Dentro, um único cartão azul, escrito naquela letra manuscrita que lhe era tão familiar. Manteve-se silencioso, os olhos baixos, alagados de recordações. Parecia que continuava a ouvi-la: “Esta gaveta é a minha ilha.” Sorriu, distraído. Por fim, leu em voz sumida: “Deixo-vos aqui os meus beijos. Os que sobraram. Sempre que não vos tinha ao pé de mim e me apetecia beijar-vos, guardava-os na minha ilha dourada. Para mais tarde. Para que, depois de eu morrer, não se sentissem tão tristes. Como sabem, sou muito organizada… ”

M



(2006)

2 comentários:

Anónimo disse...

Admirável! Nos pensamentos há gavetas com puxadores assim, dourados. (Felizmente).
B

Mónica disse...

que ternura, havíamos todos de ter uma gaveta destas
(lembro-me de magoar os dedos numa argola parecida com esta, a gaveta estava perra)