Foto de S. (A ilha dourada)
Partilhas
Quando
ela morreu, foi com pudor e uma enorme mágoa que os herdeiros
desfizeram o que restava da sua vida. Esvaziaram armários,
escolheram roupas, fizeram lotes, dividiram móveis, pegaram em cada
objecto como se acabassem de os receber das mãos dela e se tocassem
como antigamente. Esgotados de corpo e alma, refugiaram-se ao fim do
dia na penumbra da pequena sala de estar, calados, cada um com o seu
silêncio. Foi então que o mais novo abriu maquinalmente a gaveta
onde ela guardava os desenhos que em criança lhe ofereciam.
Conservava a mesma argola dourada onde gostava de enfiar os dedos
pequeninos sempre que ela lhe pegava ao colo e se sentava na cadeira
junto da mesa. Dentro, um único cartão azul, escrito naquela letra
manuscrita que lhe era tão familiar. Manteve-se silencioso, os olhos
baixos, alagados de recordações. Parecia que continuava a ouvi-la:
“Esta gaveta é a minha ilha.” Sorriu, distraído. Por fim, leu
em voz sumida: “Deixo-vos aqui os meus beijos. Os que sobraram.
Sempre que não vos tinha ao pé de mim e me apetecia beijar-vos,
guardava-os na minha ilha dourada. Para mais tarde. Para que, depois
de eu morrer, não se sentissem tão tristes. Como sabem, sou muito
organizada… ”
M
(2006)
2 comentários:
Admirável! Nos pensamentos há gavetas com puxadores assim, dourados. (Felizmente).
B
que ternura, havíamos todos de ter uma gaveta destas
(lembro-me de magoar os dedos numa argola parecida com esta, a gaveta estava perra)
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