CONSIDERAÇÕES SOBRE BABETES, BABAS, DENTES E BÚSSOLAS
Depois… Depois vem a baba provocada pelos dentes a quererem ocupar o espaço desocupado na gengiva rosada, os dedos pequeninos enfiados boca adentro, esfregando a dor, não abranda aquela coisa esquisita. Ah mas a festa do primeiro dente chegou finalmente, registe-se a data no Livro do Bebé! (E quem não o tem?...). Pouco a pouco o sorriso desdentado vai-se compondo com irmãos e primos gémeos, pontinhos brancos à espreita, cada um com sua personalidade. Apareçam, dentinhos, esperam-vos alimentos de cores variadas para experimentar e saborear! Os imprescindíveis babetes aguardam, providos alguns de uma bolsa generosa para acolher migalhas de bolachas, ou a sopa de legumes de que se não gosta, não vá tudo espalhar-se no chão.
Pois, mas é sabido que o tempo acrescenta anos e tamanhos às crianças e impõe-se perguntar qual será depois, muito depois, o primeiro dente a cair, empurrado pelo que debaixo dele se esconde. Será o primogénito então festejado com registo em Livro de Honra? Não sabemos. Abana, abana, por fim cai, esse e os outros todos que foram habitando a casa cor de rosa. Por falar em casa cor de rosa, lembrei-me agora da Casa das Histórias Paula Rego, com aqueles blocos a parecerem chaminés de palácios e dentes pontiagudos no meio da floresta. Mas voltando ao primogénito, virá então durante a noite a Fada dos Dentes, a tal que deixa uma moeda ou um pequeno presente debaixo da almofada dos meninos se encontrar lá o pequeno dente de leite empurrado pelo mais forte. (Sempre compensa a perda…) Na minha meninice não conheci estas fadas, existiam outras, mais caseiras e menos consumistas, era a minha Avó Júlia que me arrancava os dentes tremeliques quando eles estavam quase a soltar-se. Enrolava uma linha fina de coser no dito dente indeciso, prendia-a com um nó, e pronto, a um suave puxão saía ele do ninho. Havia quem guardasse os dentes numa caixinha, mas não me lembro dos meus serem dignos dessa mordomia. Hélas! Só tenho ideia de os colocar na palma da mão e de ficar surpreendida por serem ocos. De qualquer maneira, também não me serviriam para substituir os que me vão caindo. Uma questão de tamanho, o deles e o da minha boca. Cada coisa no seu tempo e no seu lugar.
Entretanto, voltando aos babetes… Por muito apelativos que sejam, a partir de determinada fase da infância deixam de ser bem aceites: Não preciso, já sou crescido. Nem mesmo ganhando estatura de guardanapos convencem os seus destinatários ansiosos por atingir importância de adulto: Ponho no colo. O pior é que quem toma o lugar de guardanapo são a camisola ou o vestido ou as calças, pois o tal guardanapo considerado desnecessário escorregou para o chão. Têm muita personalidade, tanto o que fugiu do colo como o dono do colo…
Para provar a minha tese de que os babetes nos acompanham ao longo da vida, quer mudem de tamanho, de nome e função, quer alguns adultos adorem regressar ao passado, conto-vos a história de um amigo meu que aprecia cozinhar e comer, e a quem a idade foi aumentando a barriga, só o ar me engorda, diz ele. Manifestou um dia vontade de ter guardanapos que lhe cobrissem a barriga proeminente, e a de outros barrigudos das suas relações, para que se pudesse usufruir refeições sem preocupações com eventuais nódoas atraídas pelas toilettes dos convidados. Ofereci-me para ajudar a resolver o problema. Comprei panos da loiça enormes, brancos e lisos, recortei em cada um o decote em formato de meia lua, debruei-os com fita de nastro, deixando duas pontas suficientemente compridas para os prender ao pescoço quando requisitados, e fiz-lhe a surpresa. Infelizmente, a pandemia não tem permitido esses convívios tão originais em casa deste meu amigo de longa data.
Terminando as minhas considerações, lembro ainda a existência de uma determinada baba, não propriamente fisiológica, que a todos nós alguma vez assomou, não sei se ao pensamento se ao coração, ou até frequentemente libertamos, com ou sem razão. O ridículo é que nem sempre ela se ajusta à realidade e não passa de vaidades usurpadas em proveito próprio. Pelo que uma bússola faz bastante falta nas nossas vidas, ajuda a encontrar o Norte quando ele se baralha ou desaparece dentro das nossas cabeças entre os outros pontos cardeais.
M
3 comentários:
Queria ler mais, adorei. Olha e os babetes de plástico que dão tanto jeito à mãe?
São tão queridas as tuas descrições, originais, sem clichês, tens uma linha muito subtil que nunca cais no fácil.
Divagando devagar nestes teus acrescentos caseiros e tão peculiares. E lembrei que se calhar "de pequenino se torce o destino", pois! Não é que em velhos nos caiem os dentes e, quiçá, precisaremos de uma babete (aqui se diz no feminino ou pelo menos assim fui habituada) para não nos sujarmos? Sei isso pelo meu velhote-pai falecido, sempre se lhe punha um grande guardanapo para comer: porque cismou que não queria dentadura.
***
Será que se diz "avó babada"? Mas esta é uma alegoria das boas...
Bjs
M. o teu texto é exemplar e antológico! É a história do homem no seu aspecto mais básico, mais físico, mais animal, em termos poéticos e carinhosos. E utilizas figuras de estilo que me apetece estudar e catalogar, mas para isso precisava de tempo, coisa que, imagine-se, me tem faltado de há 2 meses para cá (ah, como tenho saudades da minha Rosa!).
Parabéns, minha amiga
Enviar um comentário