OS CABIDES DA MINHA VIDA
Ao longo da minha vida existiram alguns cabides com impactos diversos em mim e nas casas em que morei. Não vou entrar em detalhes sobre os que vivem sufocados dentro de roupeiros, nalguns casos suportando sobre os ombros o peso de vestuário que não apreciarão usar, mas não resisto a mencionar as cruzetas de madeira que havia em casa da minha avó. Cumprindo a etimologia (relevante na simbologia aplicada neste contexto), com uma coluna vertebral a suster-lhes a exigente postura ancestral, mantinham, penduradas no varão dos altos guarda fatos, os vestidos e casacos compridos da moda do século passado.
Quero falar em particular dos cabides da espécie também conhecida por bengaleiros, residentes em espaços abertos com vistas alargadas, ainda que por vezes a afluência dos pertences neles deixados pelas pessoas lhes proporcione apenas uma nesga para observar o ambiente.
Na minha opinião, cada cabide possui a sua história antes de chegar ao lugar onde passa a residir, o que, suponho, explicará o género de ligação futura com a pessoa que o escolheu como complemento na sua vida. Transporta consigo uma cédula pessoal mais ou menos detalhada, passível de revelar também os condicionalismos da sua concepção: onde nasceu; em que casa, grande ou pequena, marcenaria ou fábrica, metalúrgica ou outra; quem o pensou e fez, com que dedicação ou gosto estético; porquê este material e não aquele outro o escolhido.
O primeiro cabide bengaleiro de que me lembro existia em casa dos meus avós paternos, onde passei a morar com os meus pais, irmão, avó e tia, depois da morte do meu avô, que não conheci por me ter atrasado a pousar neste mundo. Tinha eu então quase 5 anos, chegada de outro continente, e de uma casa de que não tenho memórias. A minha nova casa era agora um terceiro andar de fins do século 19, com uma porta de entrada de dois batentes, certamente considerada pouco resistente aos arrombamentos dos dias de hoje.
Ao abrirmos a porta, vindos do exterior, logo na frente, talvez a um metro de distância, existia uma parede onde estava fixado um cabide despretensioso, penso que em ferro forjado, sobre o qual refugiava o meu olhar, desviando-o assim do quadro enorme, e para mim assustador, que a seu lado morava. Soube mais tarde que se tratava da gravura Jangada da Medusa, de Théodore Géricault, agora na entrada de casa do meu irmão, que sempre a apreciou. Eu, pelo contrário, fugia dali rapidamente, percorria em passo apressado o corredor estreito e sombrio com estantes dos dois lados carregadas de livros antigos, e só aliviava os meus medos dentro do meu quarto. Mas claro que o problema voltava a surgir sempre que precisasse de fazer o percurso inverso para ir à rua, o qual nem mesmo adulta ultrapassei completamente até aparecer, entre outros que por lá espreitaram, um Cupido a quem dei mais importância e me levou com ele.
Passei a morar noutra zona da cidade, num prédio de arquitectura mais moderna, mas com o mesmo tipo de entrada do andar anterior. A porta de um batente abria igualmente para um espaço diminuto, com a parede logo ali defronte, onde pendurámos um cabide sem relevância estética, um compromisso com a economia disponível numa época de prioridades a aplicar nas necessidades das crianças.
Passados alguns anos, mudando novamente de casa, esta com acesso amplo ao interior, apaixonámo-nos pelo cabide da fotografia acima quando o vimos numa loja de velharias, sujo e tristonho, abandonado em escuridão poeirenta, incompleto na sua estrutura merecedora de atenção. Comprámo-lo e mandámo-lo limpar e arranjar. Não conheço a sua história de vida anterior ao nosso encontro. Vive comigo há 30 anos e parece feliz. Teve em tempos mais companhia do que agora, recebeu inúmeros casacos amigos, compridos, curtos, gabardines, carapuços de crianças, cachecóis, chapéus, bonés, chapéus de chuva, sacos, malas. Residentes ou de passagem, muita gente no seu espelho se recompôs, velhos e novos, até caretas de meninos em experiências de palhaços. A vida tornou-se mais solitária para nós os dois, mas mantemos as nossas conversas diárias. Ainda hoje me confessou a sua preocupação com o Chapim Real: Sinto-o tristonho, perdeu o pio, precisa de apanhar ar fresco. O dia está bonito, vai passear com ele. Pões o teu chapéu de sol na cabeça e acomodas aí o nosso amigo, tipo ninho ambulante.
Boa sugestão! Apenas receio que quem comigo se cruzar na rua pense que o confinamento prolongado me tenha afectado completamente o juízo.
M
2 comentários:
Acho que todos estamos a perder "um bocado de cabeça" com estas coisas que nos martelam o dia a dia.
É uma história com lembranças que vêm dos corredores da memória. Esse cabide e o passarinho ficam bem aí, com votos de boas-entradas!
E já agora, era uma coisa que me intrigava antigamente, era chamar-se bengaleiro quando nem havia "bengalas"...
Bjs
Consegues dar vida a todas as coisas
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