Lembro junho de 2010 numa viagem magnífica aos Açores e a travessia de barco do cais da Madalena, na ilha do Pico, para a Horta, no Faial. Comigo, em pensamento, o inesquecível livro Mau Tempo no Canal de Vitorino Nemésio e a sua Margarida, inspiradora da letra e música de Aníbal Raposo cantadas por Helena em Tema para Margarida na apresentação ao vivo do CD em Ponta Delgada, a que tinha assistido uns dias antes.
«Margarida acordou às oito horas. Era quase Dezembro; amanhecia tarde. Atirou com a dobra do lençol e, enfiando o robe de chambre, procurou com o pé as chinelinhas no chão. Chegou à janela. A quinta parecia lavrada por arados fantásticos, de relha à mostra. Os cedros estavam descabeçados, dois ou três partidos, mostrando o cerne vermelho com as fibras inchadas de água. Aqui e além, nos currais, nadavam ramos de faia em verdadeiros charcos. Havia lances de passeios deitados abaixo, com brechas profundas e torrões da bagacina esboroada, marcando o sentido do enxurro. E, para lá do «calhau» coberto das mantas da cheia, via-se o Canal ainda amargo, com o Pico negro e cónico ao fundo. O cano do Funchal fumava a meio da Doca, entre um rebocador, a draga e a canhoeira, e Margarida reparou que lhe faltava qualquer coisa: metade do mastro de vante levada pelo ciclone.»
In Mau Tempo no Canal, 1º parágrafo do capítulo O Despertar, Vitorino Nemésio, Publicações Dom Quixote, Lda., Maio de 2002.
E a quem apetecer ouvir o CD, aqui fica o link:
https://www.youtube.com/playlist?app=desktop&list=OLAK5uy_lNDadJJL2Pq8fzdg1xd2vf1_IQjqdzrc0
Tema para Margarida, faixa 5 do CD Helena Cant’ Autores Açorianos. Música e letra: Aníbal Raposo. Arranjo e piano: Carlos Frazão. Contrabaixo: Mike Ross. Violinos: Manuel Rocha. Bateria e Percussões: Joaquim Teles (Quiné). Voz: Helena Oliveira.
Tema para Margarida
Ai quem me dera partir
Na canoa da esperança
E ir ancorar noutras praias
Noutros varadouros
Ai quem me dera voltar
A gozar dos tesouros
Da felicidade que eu tinha
Quando era criança
Ai quem me dera ser garça
E voar no canal
Só entre o Pico e o Faial
Me quedar dividida
Ai quem me dera mão firme
No leme da vida
Ai este amor que me mirra
Me mata e faz mal
Ai quem me dera de novo
As certezas e os medos
Ai quem me dera ter credos
E não ser indiferente
Ai o amor passa ao largo
Da vida da gente…
Ai já o tempo se escoa
Como areia entre os dedos…
2 comentários:
Límpido, o lugar da memória.
Belas referências a propósito, a menção ao escritor e à música.
Tantas vezes o pensamento é como uma pauta que se lê.
E se dá a ler.
B.
Uma ligação perfeita: os barcos e os Açores! Adequadíssimo o excelente livro escolhido!
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